Luciana Bessa: Quarto de Despejo: Um diário de tragédias


Para Luciana Bessa “O que torna Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus relevante é o fato de que, ao longo dos séculos, a escrita de si e o diário têm contribuído para que os estudiosos possam compreender como o escritor encena a sua própria realidade, além de colocar o leitor diante dos fatos do cotidiano que permeiam o processo de escrita.. Além disso, o texto discute temas caros a Política, a Economia, de modo geral, a todos que lutam por uma sociedade mais igualitária, livre do racismo e da misoginia e por uma Literatura acessível a todos”




Por Luciana Bessa Silva*


1. Contexto

Quando surgiu em 1960, Quarto de Despejo: Diário de uma favelada causou, literalmente, um verdadeiro estrondo na Literatura Brasileira. O principal questionamento: pode-se considerar o relato do cotidiano, em forma de diário, Literatura? Conceituar um vocábulo não é uma tarefa fácil, sobretudo em se tratando da Literatura, palavra de caráter polissêmico e polifônico.

Marisa Lajolo, em sua obra O que é Literatura? (1995) declara que as perguntas em torno da Literatura extrapolam os séculos, uma vez que as respostas são sempre passageiras, já que a cada época surgem novas teorias. A professora acrescenta: “as definições propostas para a Literatura importam menos que caminho percorrido para chegar até ela” (p. 72). A Literatura existe e está aí para ser lida.

Nos ocupemos de refletir sobre esse verdadeiro arsenal de obras que estão nas prateleiras das livrarias e biblioteca. Para isso o escritor se expõe: ele precisa ser lido. Segundo Antonio Cândido “Todo escritor depende do público” (1985, p. 84). O público é o termômetro do escritor.

O texto de cunho confessional íntimo e subjetivo atrai o leitor por estar centrado no eu, um eu que expõe a vida, estabelecendo, dessa forma, uma ponte entre o escritor e o leitor. As narrativas de introspecção, que podem ou não mesclar ficção e realidade, são várias. Dentre elas: romance autobiográfico, a narrativa epistolar, o diário íntimo e ficcional e mesmo a autobiografia e a auto ficção.

O que torna Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus relevante é o fato de que, ao longo dos séculos, a escrita de si e o diário têm contribuído para que os estudiosos possam compreender como o escritor encena a sua própria realidade, além de colocar o leitor diante dos fatos do cotidiano que permeiam o processo de escrita. 
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Além disso, o texto discute temas caros a Política, a Economia, de modo geral, a todos que lutam por uma sociedade mais igualitária, livre do racismo e da misoginia e por uma Literatura acessível a todos.

Ela deve ser vista como um direito básico do ser humano, já que se trata de um instrumento de instrução e de educação, que expõe, propõe, apoia e combate nos possibilitando vivenciarmos dialeticamente os problemas, como declara Antonio Cândido, em seu texto “O direito à literatura”.

2. Um diário de tragédias 

Entende-se por trágico algo que tem “caráter funesto, sinistro, desventuroso” (FERREIRA, 1989, P. 1697). É preciso esclarecer que tragédia é um gênero dramático da literatura que floresceu, sobremaneira na Grécia, sobretudo em Atenas, cujas personagens mostram uma ação elevada que suscita terror e piedade, culminando por algum acontecimento funesto.  Ao conceituar o trágico na modernidade, Schopenhauer ressalta tratar-se de “uma dor inexprimível, o lamento da humanidade, o triunfo do mal, o desdenhoso domínio do acaso, a irrecuperável degradação do justo e do inocente” (1958. p. 60). 

O ambiente parco - a favela - de recursos foi o responsável pelo sofrimento da família de Carolina de Jesus. A vida dessa mulher negra, semianalfabeta, mãe de três filhos é uma sucessão de dores. Em seu diário, que se inicia no dia 15 de julho de 1955 e termina no dia primeiro de janeiro de 1960 há o registro direto e sensível dos fatos doridos de sua trajetória. O texto começa com sua tristeza por ser aniversário de sua filha Vera Eunice. Carolina pretendia dar-lhe um para de sapatos a ela. “Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Somos escravos do custo de vida” (JESUS, 2014, p.11).  Não bastasse, ela não “tinha um tostão para comprar pão” (JESUS, 2014, p.11) e passou o dia indisposta, porque estava resfriada. Ou seja, doente, com fome e sem poder proporcionar aos filhos um único par de sapatos. E Vera “não gosta de andar descalça”. (JESUS, 2014, p.12). O sentimento é de desespero por não ter condições econômicas para criar os filhos. 

Outro sentimento bastante forte descrito por Carolina é o nervosismo que ela sente diante da realidade vivida. “Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte” (...) (JESUS, 2014, p.12). Interessante notar que é através da leitura que ela consegue se acalmar e, consequentemente, escrever. Além de ser um ato prazeroso e relaxante, a leitura estimula o desenvolvimento da memória e da nossa imaginação, eleva nossa autoestima, nos deixa distante da solidão, nos empurra para a realização de nossos desejos. No decorrer do texto, observamos que Carolina é uma exímia leitora. “Aproveitei minha calma interior para eu ler. Peguei uma revista e sentei no capim, recebendo os raios solar para aquecer-me” (JESUS, 2014, p.12). Ler tornou-se uma necessidade na vida dessa catadora de papel, que depois de seus afazeres tinha na leitura uma fuga da miséria na qual estava submetida.  “Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o rádio. Tomei banho.  Esquentei a comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro.  O livro é a melhor invenção do homem” (JESUS, 2014, p.12). Jorge Luís Borges (1899- 1986), o autor de o Livro de Areia declarava que de todos os instrumentos produzidos pelo homem, o livro é o mais assombroso deles.  Enquanto lemos, perdemos a noção do tempo e de nossos problemas. O livro sempre é enriquecido pelo leitor, porque cada vez que ele o lê, um novo fato é descoberto, um mistério é desvendado. É como se as palavras apresentassem novas conotações. A leitura e a interpretação nunca são as mesmas.

Carolina é uma mulher forte e consciente de tudo o que acontece consigo e ao seu redor. Ela sabe, dentre outras coisas, que “o pobre não repousa. Não tem o previlegio  de gosar descanso” (JESUS, 2014, p.12). Que a favela é um lugar imundo não só no plano físico.  “Oh!  Se eu pudesse mudar daqui para um nucleo mais decente” (JESUS, 2014, p.12). Chegar à favela, era o mesmo que chegar “no inferno” (JESUS, 2014, p.14) e “A única coisa que não existe na favela é solidariedade” (JESUS, 2014, p.12). Ela odeia as mulheres da favela e todos os dias sai para trabalhar apreensiva e agitada, porque “Elas costumam esperar eu sair para vir no meu barracão e maltratar meus filhos” (JESUS, 2014, p.12). A desunião e a intriga são a tônica desse ambiente.

Para vencer todo esse sofrimento, Carolina resolve escrever um livro. “Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo o que aqui se passa” (JESUS, 2014, p.20). A escrita clareia nossos pensamentos e nossos sentimentos; oferece a possibilidade de ver determinadas situações passadas por um ângulo diferente; permite que nos conheçamos de maneira mais profunda. É preciso salientar que Carolina de Jesus não escreve com o objetivo de passar seu tempo. Ela tem o desejo deixar registrado o sofrimento pelo qual ela e seus filhos são impingidos no ambiente no qual estão inseridos.  Ela quer retratar as brigas, os xingamentos, a falta de humanidade entre os próprios moradores, a esperteza dos comerciantes, a fome, isto é, a situação miserável que é ter que morar na favela. Eis, aqui, a contribuição do Diário de Carolina. Diante de tantas pedras no caminho, todos temos um ideal. “O meu é gostar de ler (JESUS, 2014, p. 26). 

A leitura transforma a vida de uma pessoa, a torna mais crítica e reflexiva, além de ajudá-la a escrever melhor, assim como ocorreu com Carolina. Ela não tinha dia nem hora para escrever. Ela simplesmente escrevia. No dia 20 de julho, ela registra: “Deixei o leito as 4 horas para escrever”. No dia seguinte, enquanto a roupa corava ela sentou na calçada para escrever. Um senhor que ia passando, perguntou: “- O que escreve?  Todas as lembranças que pratica os favelados, estes projetos de gente humana. Ele disse:  - Escreve e depois dá a um crítico para fazer a revisão” (JESUS, 2014, p.23).  Assim como George Orwell (1903-1950) que escrevia para expor mentiras, chamar atenção e atingir um público, Carolina Maria de Jesus escreve para denunciar o comportamento daqueles que foram excluídos da sociedade.

Diferentemente das outras mulheres da favela que ficam falando uma das outras, Carolina gostava “de ficar sozinha lendo. Ou escrevendo” (JESUS, 2014, p.25).

A favela é, para Carolina, o inferno. “Tenho a impressão que estou no inferno” (JESUS, 2014, p.26).  A todo custa ela queria sair desse ambiente horroroso.  A escrita era sua salvação. Mãe de três filhos de pais diferentes, Carolina não queria mais se envolver com homem nenhum. Quando um dos moradores, seu Gino, veio convidá-la para ir ao seu quarto, ela respondeu: “É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela” (JESUS, 2014, p. 27). Eis que surge outro objetivo da escrita de Carolina: ganhar dinheiro. No livro Por que escrevo? José Domingos de Brito faz um apanhado dos motivos que levam os escritores a escrever. Dentre eles, há William Faulkner, que escreve “Para ganhar a vida”. Escrever para ganhar dinheiro é um equívoco, pois não existe uma fórmula para vender livros. Assim sendo, não há garantias de que o escritor enriquecerá simplesmente por que escreve. Muitas vezes, a mídia vende a ideia de que fácil viver de sua arte. Carolina era adepta dessa teoria.

Outro ponto interessante é o (pouco) valor que Carolina atribuía aos seus escritos.  “Há tempos que eu pretendia fazer o meu diário. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perder tempo” (JESUS, 2014, p.28). O escritor, muitas vezes, não tem a exata noção da importância de seu texto. Por isso a importância do leitor. O que seria dos autores e de suas obras, se não houvesse um público-leitor?  Não há uma arte sem público. “(...) o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros”. Isto quer dizer que o público é condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação” (CANDIDO, 1985, p. 76). Sem público, o autor fica sem referência. 

Em outro momento ela fala da inspiração para escrever. “Eu estava inspirada e os versos eram bonitos e eu esqueci de ir na delegacia” (JESUS, 2014, p.29). Escrever pode até parecer uma atividade fácil, mas não é. Exige esforço, dedicação, conhecimento no assunto e domínio da língua. 

No dia 11 de maio, dia das mães, ela registra o azul e branco do céu. É a natureza a “homenagear as mães que atualmente se sentem infeliz por não poder realizar os desejos dos seus filhos” (JESUS, 2014, p.30). Muitos são as dores de Carolina, mas duas a deixam nervosa e com pensamentos suicidas: não ter dinheiro para proporcionar o conforto para seus filhos e a fome. Ela registra que 13 de maio é um dia simpático. “É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos (...) E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 2014, p.32). Esse livro poderia inclusive ser o diário de uma mulher com fome.

Apesar dos avanços tecnológicos, sociais e políticos pelos quais o Brasil passou nas últimas décadas, a fome persiste como um problema vergonhoso e recorrente. Trata-se de um processo de (má) distribuição de renda que gera as desigualdades sociais.  Fornecer cestas básicas ou dar dinheiro, através de programas de governo, está longe de ser a solução. Carolina quase sempre dorme ou acorda doente pensando na falta de comida para ela e seus três filhos. “Eu amanhecei nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer (...) Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. “As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (JESUS, 2014, p.33). Na verdade, a fome é o retrato da miséria humana. 

Josué de Castro (1983), declara que a fome e a descoberta da bomba atômica foram as duas maiores descobertas do século XX. Em sua concepção, a fome é endêmica e não epidêmica.  Foi somente com a morte de milhões de pessoas depois de duas grandes guerras, que a fome passou a ser discutida pelas nações. No ano de 1943, foi realizada Conferência de Alimentação de Hot Springs, que deu origem à FAO -  Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. 

Conforme Maria Glória Gohn (1995), é possível identificar, no Brasil, uma série de lutas em torno da fome: a) 1913 - Comício contra a Carestia – que teria reunido, no Rio de Janeiro, mais de dez mil pessoas. O movimento se espalharia por várias cidades do país;  b) 1914 - Atos contra o Desemprego e a Carestia – realizados Rio e em São Paulo; c) Em 1918, no Rio de Janeiro, Movimento de Comitês de Combate à Fome; d) Entre 1925 e 1938 há o  Movimento do Cangaço, no Nordeste, em que as ações de Padre Cícero em Juazeiro do Norte são associadas à questão da miséria; e) Em 1931, tanto no Rio como em São Paulo foi realizado a Marcha da Fome; f) Em 1946, é lançada a Campanha Popular Contra a Fome, com uma Banca de Queixas, para reclamações contra comerciantes que vendiam caro ou especulavam com mercadorias; g) Entre 1951 e 1953, o Movimento Contra a Carestia atinge diversas regiões do Brasil através Passeatas da Panela Vazia; h) No dia 7 de agosto de 1963, em várias partes do país, é realizado a Promoção do Dia Nacional de Protesto Contra a Carestia etc.

A questão da fome não é só a redistribuição melhor de renda, mas de poder. Erradicar a pobreza está para além de políticas assistencialistas. Elas, ao contrário, contribuem para perpetuá-la.

A favela, ambiente em que Carolina e sua família habitam, é retratada como um lugar desumano, amargo e triste, como vimos anteriormente. No dia 30 de maio, ela descreve um grupo de favelados que chegaram à favela, “um lugar sem atração. Um lugar que não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o zumbido das abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho. O único perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga” (JESUS, 2014, p.47). Para ela, qualquer pessoa ou animal em qualquer lugar é mais feliz do que nesse ambiente hostil. “As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. (...) O mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer” (JESUS, 2014, p. 35). A convivência entre os indivíduos é uma arte extremamente difícil, porque a intolerância cresce a cada dia. “Que realidade amarga!” (JESUS, 2014, p.35) . Não é para menos. Carolina é catadora de lixo. E muitas vezes cata comida no lixo para comer. “Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me: - Leva, Carolina. Dá para comer” (JESUS, 2014, p.40).  “... achei um cará no lixo, uma batata-doce e uma batata solsa” (JESUS, 2014, p.41).  Não é só Carolina que pega comida na rua. Seus filhos também. “Assim que ferveu eu puis o macarrão que os meninos cataram no lixo” (JESUS, 2014, p.41). Dentre os filhos, Vera é aquela que reclama e sempre pede mais comida. Em uma dada ocasião, ela diz: “- Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida gostosa” (JESUS, 2014, p.42). Não há situação mais dorida para uma mãe do que ouvir de sua filha que quer ser vendida, pois deseja ir para um lugar que ela tenha o que comer. Todo esse contexto no qual estão inseridos leva Carolina a dizer que os favelados estão no “quarto de despejo” (JESUS, 2014, p.43). “... A favela é o quarto das surpresas” (JESUS, 2014, p. 51).  Ao recolher alimentos das ruas “...Percebi que no Frigorífico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a do alcool” (JESUS, 2014, p.44).  A fome leva a morte milhares de pessoas ao redor do mundo. Além de matar, ela destrói emocionalmente, aos poucos, um ser humano. 

A fome não é causada pela falta de alimentos, como já sabemos. Daqueles que passam fome no mundo, parte deles estão em países subdesenvolvidos, como o Brasil. É preciso salientar que quem passa fome como Carolina é prejudicado pela cultura do desperdício dos países ricos. Nesses países, por exemplo, grande parte da comida vai para o lixo em condições de serem consumidas.

Lembremos que na tentativa de reverter esse quadro, em 2003, o governo federal criou o programa Fome Zero, que dentre outras coisas, incluía a transferência de dinheiro, bancos de alimentação e cozinhas comunitárias. Segundo Carolina, só quem passou fome deveria chegar à presidência da república para mudar essa situação. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) lançou a campanha “Um mundo #fomezero para 2030 é possível”. O objetivo é não só sensibilizar a sociedade para as ações de combate à fome, como lutar contra o desperdício de alimentos.

Diante de tantas pedras no caminho, Carolina se pergunta “será que Deus vai ter pena de mim?”  “(...) O José Carlos chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando eu vejo ele comendo as coisas do lixo penso: e se tiver veneno? É que as crianças não suporta a fome” (JESUS, 2014, p.46). A forme gera desnutrição, tontura, sensação de desconforto, dores, fraqueza, raquitismo, anemia, dentre outras doenças. Carolina conclui que “Só mesmo Deus para ter dó de nós” (JESUS, 2014, p.48).

Em sua concepção, seu maior “dilema é sempre comida” (JESUS, 2014, p.51). Não pensar na falta de alimentos e nos filhos é uma forma que ela encontrou para evitar o sofrimento. “(...) Quando estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? (...) Será que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela?” (JESUS, 2014, p.50). Essas dúvidas são recorrentes no caminho percorrido por essa mulher batalhadora, que luta cotidianamente para sobreviver junto com seus filhos, em um lugar onde se revolve os problemas com “paus, facas, pedradas e violências” (JESUS, 2014, p.51). Um ambiente complemente inóspito.

Algumas atitudes e decisões por parte de Carolina e daqueles que estão ao seu redor são tomadas com base no que se tem ou não para comer. Dona Domingas foi visitar Leila, a feiticeira, da favela. Nilton, filho de Domingas, não fazia parte dessas visitas, porque tinha medo de ser transformado em um animal. No entanto, quando não aguentou mais sentir fome, passou a frequentar à casa de Leila com sua mãe. Diante dessa situação, Carolina concluiu que “A fome também serve de juiz” (JESUS, 2014, p.52). Afinal, “Só quem passa fome é que dá valor a comida” (JESUS, 2014, p.53).  Por comida, alguns morrem; outros se matam. É preciso salientar que a fome de Carolina é, sobremaneira, de qualidade de vida, de ser boa mãe, de ser vista pela sociedade. A comida é para ela um “espetáculo deslumbrante”. 

Diante de tanta miséria, há momentos de revolta. “Podia dar uma enchente e arrazar a favela e matar estes pobres cacetes. Tem hora que eu revolto contra Deus por ter posto gente pobre no mundo, que só serve para amolar os outros” (JESUS, 2014, p.56).  Revoltar-se é uma forma que Carolina encontrou para expurgar as dores e as provações pelas quais ela tem que passar cotidianamente. E, ao pensar na vida atribulada, que levava Carolina lembrou-se das palavras de Frei Luiz que “Diz que Deus dá valor aos que dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse que os seus filhos comendo gêneros deteriorados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque revolta surge das agruras” (JESUS, 2014, p.86). Diante da opressão nos revoltamos contra tudo aquilo que nos oprime. Embora vivendo sob condições sub-humanas, revoltada com a vida que leva, Carolina ainda consegue usar a imaginação para espantar as dores e dissabores “As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários” (JESUS, 2014, p.60).

Até a chuva, benção para o Nordestino, é para Carolina um sofrimento, porque é um dia que ela não pode catar papel. É, portanto, dia de fome. “O dia que chove eu sou mendiga. Já ando trapuda e suja. Já uso o uniforme dos indigentes” (JESUS, 2014, p.61). Essa “roupa” tornava não só Carolina, mas os outros favelados como pessoas invisíveis ao seio da sociedade. Essa invisibilidade, paradoxalmente, os ajuda a recolher comida do lixo e a não escutar certas ofensas. “... Passei na fábrica (...) e catei uns tomates. O gerente quando vê repreende. Mas quem é pobre tem que fingir que não ouve” (JESUS, 2014, p.71). Ser pobre é ser invisibilizado pela sociedade, é ter sua dignidade e direitos confiscados. É inclusive ser achincalhado por outro pobre e não ter de seu semelhante, empatia. “Porque será que o pobre não tem dó do outro pobre?” (JESUS, 2014, p.83). 

Por esses e outros fatores, Carolina começa a achar sua “vida insípida e longa demais”. E associa a cor da natureza à sua alma “O dia está triste igual a minha alma” (JESUS, 2014, p.89). Embora guerreira, é nítido que essa mulher vive cansada, como ela mesma descreve, física e mentalmente.  

Carolina é uma mulher que exala o desejo de uma vida melhor e digna. No dia 15 de julho, aniversário de sua filha Vera Eunice, ela quer fazer uma festinha, mas tem consciência que “isto é o mesmo que querer agarrar o sol com as mãos” (JESUS, 2014, p.89). É uma mulher que entra em desespero, quando não tem papel na rua para catar. “Passei no Frigorífico. Havia jogado muitas linguiças no lixo. Separei as que não estavam estragadas. (...) Eu não quero enfraquecer e não posso comprar. E tenho um apetite de Leão. Então recorro ao lixo” (JESUS, 2014, p.89). O lixo tornou-se a “salvação” de Carolina.

Uma de suas grandes tristezas é acordar pela “manhã e não ter nada para comer”. O sentimento é de morte. “Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome” (JESUS, 2014, p.99). Essa angústia logo desaparece, quando ela consegue o que comer. Todo esse peso que Carolina carrega fez desaparecer o sorriso de seu rosto “Fiquei olhando minha filha sorrir, porque eu já não sei sorrir” (JESUS, 2014, p.102). O sorriso é sinal de alegria, de contentamento, de vontade de viver. É a alma em estado de êxtase. Mas a tristeza e o nervosismo são os sentimentos que perseguem Carolina “Hoje eu não estou nervosa. Estou triste. Porque eu penso as coisas de um jeito e corre de outro” (JESUS, 2014, p.104). O outro jeito que os acontecimentos ocorrem na vida de Carolina é sempre marcado pela tragédia, que parece não ter dia, nem hora para acabar.

A obra analisada é uma narrativa sensível sobre a realidade de uma mulher negra. O individual e o coletivo em um mesmo texto nos faz compreender a vida de pessoas que foram excluídas da sociedade e jogadas em um “Quarto de despejo”, onde impera a violência, a desunião, as desavenças e a falta de solidariedade.

O tom trágico é a tônica do Diário de Maria Carolina de Jesus, sujeito e objeto de sua própria narrativa. Nele vemos a dor, o sofrimento, violência, brigas, morte e muita fome, além é claro, do destino, do infortúnio, da má sorte, das adversidades agindo sobre as indivíduo. Carolina, catadora de lixo, mulher negra, cônscia de suas responsabilidades, ética em suas atitudes, lutou bravamente por sua vida e de seus filhos.






* Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Coletivo Camaradas






Referências
BORGES, Jorge Luís. Borges oral. Obras Completas. São Paulo: Editora Globo, 1999. Vol. IV (1975-1988).
CANDIDO, Antonio. O escritor e o público. In: Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história. 7ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1985. 
_________________. O direito à literatura. In: Vários Escritos. Duas Cidades: São Paulo/ Rio de Janeiro, 2004, p.  169-192.
CASTRO, Josué de. Fome, um tema proibido. Petrópolis: Vozes, 1983.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2.ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1989
GOHN, Maria da Glória. A ação da cidadania contra a miséria e pela vida ou Quando a
fome se transforma em questão nacional. In: GAIGER, Luiz Inácio (Org.). Formas de
combate e resistência à pobreza. São Leopoldo: Unisinos, 1996. p. 23-57
JESUS, Maria Carolina. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014. 
LAJOLO, Marisa. O que é Literatura.  São Paulo: Nova Cultural: Brasiliense, 1986 (Coleção Primeiros Passos)
SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo. 2 ed. Trad. A.F. Rocha. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1958.

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