O MUNDO DE SOFIA: uma criança do mundo

Por Edivone Meire Oliveira*

Hoje venho falar de “O Mundo de Sofia: uma criança do mundo”. Sim, Sofia vive no mundo, de país em país, de estado em estado, de cidade em cidade. Convive com vários jeitos de ser, de viver, de ler o mundo, com várias línguas, dialetos. Ela anda pelo mundo. Sofia é uma criança de Circo. Ela vai para onde o circo vai, faz parte de uma família itinerante. Isso é muito natural para ela, é a vida que ela conhece e gosta.
A menina de nove anos pareceu não se incomodar em trocar frequentemente de escolas. Sofia vê a troca de escola como algo positivo porque assim ela conhece mais amigos, conhece mais pessoas e lugares. Sinceramente, achei que isso seria um grande problema para a menina. Quantas surpresas: alargando padrões de referência no convívio com a Sofia!
Sofia brinca enquanto ensaia, ensaia enquanto brinca. Ela brinca de circo e diz que aprende muitas coisas no ensaio. Os amigos fazem de conta que são os palhaços; ela, contorcionista. Quando crescer quer ser de circo, trapesista e contorcionista: eis o seu sonho. A mãe da menina fica orgulhosa porque “[...] é isso que somos, é disso que gostamos, como os nossos ancestrais saltimbancos”.
Tão bom se os profissionais das escolas, que ainda se agarram a conceitos e concepções abstratas e universais de criança e de infância, pudessem entender e acolher os saberes das crianças itinerantes, caiçaras, quilombolas, ribeirinhas, de assentamento ou acampados da reforma agrária, indígenas, crianças filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais. Por isso, vamos falar de crianças, infâncias, no plural.
Para a garantia dos direitos das crianças itinerantes foi preciso a elaboração e publicação da Resolução nº 3, de 16 de maio 2012, pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, que define diretrizes para o atendimento de educação escolar para populações em situação de itinerância, garantindo seus direitos socioeducacionais.
A lei determina a garantia de matrícula em escolas públicas e particulares e a adequação dos sistemas educacionais às particularidades das  crianças. Vejam que nao é somente a criança que deve se adaptar à escola, é o contrário: as escolas devem se organizar para recebê-las, efetivando estratégias pedagógicas adequadas às suas necessidades de aprendizagem e, se preciso, oferecer atividades complementares para “assegurar as condições necessárias e suficientes para a aprendizagem dessas crianças [...]” (Art. 4º, §3º), em respeito às particularidades socioculturais, políticas e econômicas das crianças e de suas famílias.
Muitos profissionais da educação ainda precisam entender que antes do b-a-bá exitem as crianças, que o b-a-bá vem junto e não antes delas, que as diversas formas de ler o mundo é a grande riqueza na educação. Leitura de mundo, leitura de gente, leitura do outro, leitura gestual, corporal, leitura do tônus muscular, do choro, do grito, do olhar, do coração, leitura das letras, que são leituras do mundo. linguagens diversas, leituras diversas.
Mas, só conseguimos ler as pérolas oferecidas initerruptamente pelas crinaças se a Pedagogia da Escuta estiver presente, conforme defendem os italianos Loris Malaguzzi (1999) e Carla Rinaldi (2012). É preciso ver o que as crianças dizem o tempo todo, desde que nascem. Mas, a pedagogia tradicional que ainda perdura até os dias atuais tem se pautando na concepção de criança como sendo o “ainda-não”, o “contudo-não”.
Não raro, bebês e crianças são desconsiderados em sua forma de ler, perceber e interagir com o mundo físico e social, coisa que eles fazem com perfeição, é preciso ver. Por vezes, não se vê do são capazes e tudo o que fazem... Ao contrário, são compreendidos como: “os ainda-não adultos, ainda-não responsáveis, ainda-não capazes, ainda-não competentes, ainda-não com os mesmos direitos, ainda-não confiáveis, etc.” (CASAS, 2002, p.33 In FOCHI, 2015). “[...] da mesma maneira, também é uma infância do ‘contudo-não’ ou do ‘falta-lhe’: contudo-não fala, falta-lhe pouco para andar, contudo-não sabe contar, contudo-lhe-falta aprender a dormir sozinho...”. (ALFREDO HOYUELOS In FOCHI, 2015).
A cegueira desta concepção adultocêntrica de conceber as crianças impede que se enxergue tudo o que os bebês e as crianças nos dizem o tempo todo, e tudo o que sabem fazer. Escutar uma criança é interpretar as suas linguagens e expressões continuamente, perceber suas curiosidades e agir em virtude delas. Nesse espaço de escuta, os direitos de aprendizagem e de desenvolvimento infantil tornam-se a base de sustentação das novas propostas de organização curricular para a educação de crianças.
Contrapomo-nos, portanto, à ideia de que a infância seja somente um período de passagem, de preparação para o mundo adulto, ideia esta baseada na concepção de criança e de infância pautada na incompetência infantil, na incompletude, na incapacidade para conhecer a si, o outro e o mundo físico e social, o que gera subestimação dos bebês e das criancas e, como consequência, engendra uma educação excessivamente diretiva, adultocêntrica e insensível para com o mundo infantil.
Impõe-se-nos o desenvolvimento de sensibilidade para enxergar o que os bebês e as crianças sabem fazer, o que eles nos “dizem” sobre si, sobre o outro e sobre o mundo, para aprender a escutá-los em suas diversas linguagens não verbais e afetivas, desde as expressões do tônus muscular, do choro, dos gestos, dos olhares, dos sorrisos, das garatujas, dos desenhos, da linguagem verbal incipiente do tatibitati até a fala propriamente dita e as diversas linguagens: música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura.
Impõe-se, por conseguinte, as Pedagogias da Infância, tambem no plural, aquelas que procuram ler as crianças, entendê-las, mas não obedecê-las, é bom que se diga isso para que não haja confusão entre a Pedagogia da Escuta e as pedagogias espontaneístas. Temos grandes blocos de objetivos traçados: conhecer a si, o outro, o mundo físico e social.
Para que? Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI (BRASIL, 2009), as propostas pedagógicas devem ter como objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças” (Art 8º).
Importa mencionar que, de acordo com as DCNEI, em seu Art 9º, “As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira, garantindo experiências que, dentre outros propósitos: [...] possibilitem vivências éticas e estéticas com outras crianças e grupos culturais, que alarguem seus padrões de referência e de identidades no diálogo e reconhecimento da diversidade”.
Sofia tem muito a aprender com seus colegas e professores. Mas, tambem tem muito a ensinar para estas pessoas...ensinar sobre como é viver em um circo pelo mundo, morar em um treiler, mudar de escola com muita frequência, sobre suas brincadeiras, suas aprendizagens no circo, sobre as cidades por onde passou, as comidas que comeu pelo mundo, as línguas que teve que se esforçar para entender para poder se comunicar com as pessoas que conheceu, a disponibilidade para se adaptar a cada nova situação, a cada nova escola, a cada nova culinária, a cada nova brincadeira que aprende pelo mundo.
O que as escolas por onde Sofia anda estão fazendo com todas as suas experiências de vida? Para onde vai tudo isso? As crianças dessas escolas estão tendo a oportunidade de conhecer a Sofia? Sofia tem tanto o que nos ensinar. Mas, não raro, o foco da escola está no ensino descontextualizado das letras, dos números, encontros vocálicos, relevo... será que não podemos conhecer o mundo um pouco pelos olhos de Sofia? De Sofia e todas as outras crianças com suas ricas experiências, sejam no circo Le Amar, no quilombo Carcará, na Comunidade do Gesso, nos sítios, debaixo dos pés de manga da Batateira, nos quintais, nos terreiros e nas terreiradas, nas rodas, nos condomínios, nos assentamentos, nos grandes centros urbanos.
Uma organização curricular por meio de campos de experiências pode nos levar a histórias escolares entremeadas de vida, de culturas, de trocas, de sentido. Dar sentido à educação é do que precisamos. aprender a ler para que? Por que? Para quem? Na Comunidade do Gesso, aprender a ler mistura-se com vida, com experiências, com busca do conhecer a si e o outro, o mundo social e natural. tem a ver com transformação! As perspectivas individualistas, competitivas e, por conseguinte, excludentes não nos interessam.
A escola precisa mudar. De acordo com Dewey, a escola não deve ensinar como viver em uma democracia. As crianças precisam viver a democracia cotidianamente na escola, participando, interagindo, já que são seres participativos e gostam de sê-lo. A escola não tem que ensinar como viver lá fora...assim, ela se torna cada vez mais artificial, desconectada das experiências infantis, do mundo. Ela precisa ser o mundo, ser a democracia, ser um espaço de construção coletiva de aprendizagens para formar, primeiramente, gente, gente que entende, que acolhe, que consegue se colocar no lugar do outro, gente solidária, gente confiante em um mundo melhor.
Reconhecemos o maravilhoso trabalho realizado em muitas escolas públicas e particulares, por grandes profissionais, que conhecemos em nossas pesquisas aqui no Cariri e também por meio dos depoimentos em nossas aulas na graduação e pós graduação. Mas, sabemos também que isso não é regra. Que muitos ainda precisam trazer a vida para a escola. O discurso é: trazer o conhecimento prévio da criança. Como? Que horas? Na rodinha? Nos quinze minutinhos da acolhida? É claro que não.
Essa educação sem conexão com a vida das crianças as leva à fadiga, ao choro, ao desencanto pelas letras. As letras são apenas tarefinhas, por vezes, sem sentido e sem significado para as crianças. Aqui, não propomos uma educação espontaneísta, não! Propomos valorizar a espontaneidade das crianças, suas verdades, suas hipóteses sobre as coisas do mundo, potencializando-as, ampliando suas experiências, incitando novos sentidos e significados, alargando seus padrões de referência.
Nossa função é ampliar a educação familiar e comunitária e não criar uma educação paralela completamente artificial. Quando falamos em organização curricular por campos de experiências na Educação Infantil, estamos em sintonia com Dewey com o seu conceito de experiência indissociável do conceito de aprendizagem, pois aqui a experiência é vista como "descoberta das conexões entre as coisas" (1997, p. 139).
Conversando com Sofia, prestei atenção que o circo toma a sua vida, está no centro de tudo o que diz e faz. É a vida dela! Como isso pode ser deixado de fora do processo educacional escolar? Quando chegamos no circo, a menina estava fazendo um trabalho de ciências na bilheteria, ajudada por um irmão e por outras crianças do circo. Ela buscava sentido nas atividades da escola, usando suas experiências do circo para confeccionar uma maquete de Ciências sobre circuitos elétricos. O que você vai fazer? “O circo cheio de luzes que piscam”.
Assim, ainda de acordo com Dewey (1997, p.73), trata-se de “encontrar o material de aprendizagem dentro da experiência” para, consecutivamente, promover o desenvolvimento progressivo do que já foi experienciado, estruturando-o de forma mais rica e organizada. Assim, novos conhecimentos serão agregados às experiências iniciais. Desse modo, compete ao professor uma visão prospectiva para enxergar nos saberes das crianças o que pode constituir abertura de novos horizontes.
Dewey nos sugere que não apresentemos verdades já estabelecidas por meio de aula expositiva (mesmo porque para bebês e crianças bem pequenas isso é absolutamente inviável), mas que ensinem indiretamente, que organizem momentos nos quais as crianças possam identificar problemas genuínos e, a partir deles, possam estabelecer conexões com outros conhecimentos. As DCNEI (BRASIL, 2009) conceituam currículo como um conjunto de práticas que articulam os saberes das crianças com o patrimônio cultural, artístico, social e cognitivo da humanidade e não como um rol de conteúdos como tradicionalmente de fez.
Nessa perspectiva, a função do professor é muito mais complexa do que a pretensa ideia de transmitir conhecimentos: ele deverá conhecer as crianças, promover mediações diretas e indiretas e acompanhar os progressos infantis, potencializando-os, tratando de “[...] induzir uma vivência vital e pessoal” para cada criança (DEWEY, 2002, p. 171).
Nesta abordagem educacional, o mais importante não é a matéria de estudo em si mesma e por si mesma, mas as conexões entre uma dada matéria com a experiência atual da criança, possibilitando uma ampliação dessa experiência. Assim sendo, as interações entre crianças e crianças, crianças e professores, se multiplicam porque envolvem uma busca cooperativa e uma necessária partilha de saberes e conhecimentos.
Segundo Dewey (2002), para tanto, é preciso que o professor: oportunize momentos que despertem e guiem a curiosidade; encontre ligações nas situações experienciadas que favoreçam a sua aplicação em situações posteriores; formule problemas e propósitos que levem as crianças a considerar novas questões e novas perspectivas.
Tudo isso requer que o professor conheça as crianças (aqui recomendamos a Pedagogia da Escuta de Malaguzzi e Carla Rinaldi), organize tempos, espaços, materiais e atividades adequadas para que sejam garantidos os direitos das crianças de conviver,  brincar, explorar, participar, comunicar e de se conhecer....conhecer-se a partir do outro porque somos o que somos porque vivemos com o outro.
A criança não é um ser passivo que apenas recebe cultura, ao contrário, ela ler o mundo, interpreta-o e reinventa-o, produzindo cultura quando brinca. Brincar é coisa muito séria, é a língua universal das crianças. O brincar é natural ao ser humano, homo ludens, os brinquedos e as brincadeiras, culturais. 
De acordo com as DCNEI, em seu Art 4º, as propostas de educação para crianças “[...] deverão considerar que a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura”.
Defendemos, portanto, uma educação que promova a interação entre o que as crianças já sabem sobre si e o mundo com o patrimônio construído pela humanidade. Isso posto, os profissionais da educação precisam otimizar e potencializar os conhecimentos infantis, agregando outros conhecimentos por meio de situações e experiências significativas ao seu desenvolvimento cognitivo, afetivo, psicológico, social e cultural.
A mãe da Sofia sonha com uma escola pública de qualidade para todas as crianças, com melhores condições de trabalho para os profissionais da educação e consistente formação docente que respeite os direitos das crianças e suas suas formas de ser, que seja integral, tenha música, balê, artes, que ocorra por meio de experiências, em diferentes lugares, com metodologias mais atrativas às crianças.

* Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre em Educação (UFC), Especialista em Psicopedagogia (Cetrede/UFC) e graduada em Pedagogia (UFC). Atualmente, é professora adjunta do departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri (URCA), lecionando e pesquisando na área de Educação Infantil.  

REFERÊNCIAS
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução Nº 5, de 17 de Dezembro de 2009. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, 2009.
________. Resolução nº 3, de 16 de maio 2012. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de maio de 2012, Seção 1, p. 14.
DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3.ed. São Paulo: Nacional, 1997.
________. A escola e a sociedade: a criança e o currículo. Lisboa: Relógio D'Água, 2002.
EDWARDS, C. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999.
FOCHI, Paulo. Afinal, o que os bebês fazem no berçário? : comunicação, autonomia e saber-fazer de bebês em um contexto de vida coletiva. Porto Alegre: Penso, 2015.                                                                                                                                                                                                         
RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emília: escutar, investigar e aprender. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012.                                    

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