Sinhá Vitória, Fabiano, Baleia, os filhos: fugindo da seca e do latifúndio
Obra-prima homônima de Graciliano Ramos, Vidas Secas, adaptado para a telona por Nelson Pereira dos Santos chega aos cinquenta revigorado pela humanidade de seu conteúdo e inovação de sua estética.
Por Marcos Aurélio Ruy *
Um dos próceres do Cinema Novo - movimento que revolucionou a cinematografia do Brasil na busca de entender o país e seu povo - Nelson Pereira dos Santos conseguiu em Vidas Secas (1963) estampar com rara felicidade a cara do Brasil das décadas de 1930/40 e ser fiel ao livro de Graciliano no que o livro tem de essencial: mostrar a luta do camponês nordestino para sobreviver as agruras do tempo e superar as adversidades impostas por um sistema cruel, onde prevalece a força dos donos da terra.
Mostra a saga da família de Fabiano (Átila Iório) e sinhá Vitória, juntamente com os dois filhos e a cachorra Baleia na busca constante de vida melhor, numa vida árida em terras secas que expulsa a família camponesa do sertão para a cidade grande, para melhorar de vida e dar futuro para os filhos.
O filme manteve a linguagem contida do livro, que neste ano completa 75 anos. Quase sem música, com poucos diálogos, mostra a dureza do sertão encravado na alma dos camponeses, sujeitos a um sistema que os desumaniza e os coloca em posição de inferioridade pela ignorância a que são submetidos. São analfabetos, de poucas palavras, sem grandes horizontes na vida.
Toda o enquadramento das câmeras possibilita ao espectador perceber o quanto o homem é preso à terra e dela tenta tirar seu sustento, mas despossuído e submetido é explorado pelo dono da terra e humilhado pelo poder local dominado pelos coronéis.
Com fotografia sem lentes artificiais, a película transmite a visão clara e seca do camponês que não vê saída e submete-se às ordens e à natureza, sem pestanejar.
Mas nem filme nem livro são desesperançados como escreveu o jornalista estadunidense Vincent Canby, no New York Times. Para ele, o filme é “tão absoluto, tão desesperançado que é não somente um estado de ser, mas também algo tão incompreensível (para alguém que não conhece a realidade descrita) como outra dimensão no tempo”. Segundo Canby, Vidas Secas é “uma chamada para as armas” para combater a pobreza descrita na obra.
A película conseguiu captar a proposta do escritor em mostrar a aridez das relações humanas no sertão e aprofundar a interiorização dos personagens na busca de entender o que não conseguem pela vida que levam e são forçados a se submeter, numa relação dialética entre homem, natureza e o sistema explorador do trabalho.
“Vidas Secas, o filme, foi fiel, na letra e espírito, ao livro de Graciliano Ramos. A mesma concisão, secura, despojamento, poesia, o mesmo tempo – quase silêncio – dos personagens. Que naquela vida de gente-bicho praticamente não se fala, as pessoas também vão se secando internamente”, diz Helena Salem no livro Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. O próprio diretor explica seu modo de trabalhar essa adaptação ao contar que alcançou “uma liberdade formal muito grande” nas filmagens, mas acrescenta que respeitou “integralmente as duas partes da carta”, qual sejam: “nunca desvirtuar o pensamento do autor, respeitar, portanto, a essência do livro, e a segunda parte, não só referente ao condicionamento histórico, mas fazendo o possível para não alterar a estrutura narrativa que o autor elaborou. Isso porque a forma de contar uma história é determinada pela maneira de pensar”, acentua.
Uma curiosidade mostra atualidade da obra. Quando o filme foi representante do Brasil no Festival de Cannes, na França, em 1964, a crítica francesa ficou abismada com a cena da morte de Baleia, muito realista, e acreditou que a cachorra tivesse sido sacrificada de verdade. Os cineastas tiveram que levar o animal para o festival onde, com status de celebridade, a cadela era levada em todas as apresentações dos integrantes do filme. Desfeito o mal-entendido, Vidas Secas foi muito elogiado. Esse fato mostra que essa onda de dar mais valor a bichos do que a pessoas vem de longa data...
Os personagens portam-se quase como bichos, a sua humanidade desaparece em grande parte porque se igualam a bichos, mas apresentam humanidade, ainda que rudimentar, quando mostram seus sonhos, até mesmo a Baleia parece sonhar, só que os sonhos de Fabiano e de sinhá Vitória vão num crescer entre uma cama de couro e um futuro melhor para os filhos, quando sinhá Vitória afirma que eles vão para a escola e ter a chance de ter outra vida que não a de seus pais.
Ela diz: “temu qui virá gente”. Fabiano rudimenta pensamentos de que está mais para bicho do que para homem, mas sonha em virar homem e andar de cabeça erguida, sem ter que obedecer sempre.
Em várias passagens, ele se reporta ao patrão e aos poderosos chamando-os de brancos, para derrubar inclusive a ideia falsa da “democracia racial”. Os ricos eram os brancos.
Sucesso de crítica, o filme não obteve o mesmo sucesso de público. Disparidade explicada por Darlene J. Sadlier em sua biografia do cineasta Nelson Pereira dos Santos, onde comenta a acusação feita pelo jornalista e crítico de cinema Ely Azevedo à “Metro Goldwyn Mayer Studios (MGM), que tinha contratos com os cinemas do Rio em que o filme foi brevemente exibido”. “Propositadamente tornado curta sua permanência nas salas”, justamente por temer “que seu sucesso pudesse provocar algo como uma abertura para uma indústria cinematográfica brasileira mais competitiva”, acrescenta.
Situação semelhante vive a produção do cinema brasileiro ainda hoje com a predominância de multinacionais e o quase monopólio da Globo Filmes na produção e distribuição e, ainda, a predominância de salas dominadas por multinacionais também. A dificuldade e disparidade de público entre obras estadunidense em maioria e os filmes brasileiros ainda é enorme, mesmo com o aquecimento da s produções nacionais na última década.
Dificilmente uma adaptação de obra literária consegue captar a essência de uma obra de maneira tão profunda como Nelson Pereira dos Santos conseguiu com Vidas Secas. O filme está inteiramente disponível sem no portalwww.graciliano.com.br. Vale a pena assisti-lo completo e ler o livro para as inevitáveis comparações, e com esses clássicos do cinema e da literatura entender um pouco melhor o Brasil e a formação do povo brasileiro.
Filme e livro mostram faces de um Brasil que ficou para trás em tamanha crueldade da exploração do homem do campo nordestino, mas estampam vários aspectos do brasileiro e das relações de classe no país, sempre em oposição aos interesses da classe trabalhadora, no que tange a uma vida menos desigual e mais justa. Mostram que o Brasil mudou e muito, mas ainda há muito que se mudar para o país chegar ao lugar tão sonhado por gerações de homens e mulheres que dedicaram a vida a construir uma nação mais humana.
Nelson Pereira dos Santos
Nasceu em São Paulo, em 22 de outubro de 1928. É um dos precursores do Cinema Novo. Entre muitos outros filmes, fez a primeira adaptação de uma obra de Graciliano Ramos para o cinema, Vidas Secas (livro publicado em 1938 e adaptado para a telona em 1963). Confira cinematografia do cineasta abaixo.
Graciliano Ramos
Nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892 e morreu dia 20 de março de 1953. Um dos maiores escritores brasileiros publicou clássicos da literatura nacional como Angústia, São Bernardo, Caetés, Infância, A Terra dos Meninos Pelados, Vidas Secas, entre muitos outros.
* Marcos Aurélio Ruy é colaborador do Vermelho
Assista ao filme:
http://graciliano.com.br/site/1963/08/filme-vidas-secas-1963-nelson-pereira-dos-santos/
Filmografia de Nelson Pereira dos Santos:
1949 - Juventude (curta-metragem)
1955 - Rio, 40 Graus
1957 - Rio, Zona Norte
1961 - Mandacaru Vermelho
1962 - Boca de Ouro
1963 - Vidas Secas
1967 - El Justicero
1968 - Fome de Amor
1970 - Azyllo Muito Louco
1971 - Como Era Gostoso o Meu Francês
1972 - Quem é Beta?
1974 - O amuleto de Ogum
1977 - Tenda dos Milagres
1980 - Na Estrada da Vida com Milionário & José Rico
1982 - Missa do Galo (curta-metragem)
1984 - Memórias do Cárcere
1987 - Jubiabá
1994 - A Terceira Margem do Rio
1995 - Cinema de Lágrimas
1998 - Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo
2000 - Casa Grande & Senzala (série documental para TV)
2001 - Meu Cumpadre Zé Keti (curta-metragem)
2004 - Raízes do Brasil (documentário)
2006 - Brasília 18%
2009 - Português, a Língua do Brasil (documentário)
2012 - A Música segundo Antonio Carlos Jobim (documentário)