Por Izaíra Silvino
Este tema representa para mim, artista e
professora, uma sina e um destino.
Quando me entendi gente no mundo, já era
artista, quando me entendi professora, já era de arte.
Tudo que aqui direi, agora, longe de ser
apenas uma reflexão intelectual, uma sistematização de idéias e conceitos
acadêmicos, é um testemunho de vida, uma aspiração de ser. São descobertas
intelectual fruto das experiências de vida de uma pessoa que acredita que os
sonhos, todos eles, integram a vida da gente agora, neste momento, neste
segundo vivido, como a seiva de qualquer planta, que não é o amanhã da fruta,
mas o agora vivo da fruta futura.
Não nego, renego e ou alego minhas
descobertas intelectuais, vivo-as. Agradecida pela lembrança de terem me
chamado a vir aqui orar com Vocês estas descobertas intelectuais, lembro que
muitas outras pessoas poderiam estar detalhando com muito mais propriedade suas
experiências de vida aqui, agora. No entanto, sem falsa modéstia, reconheço que
tenho algo a dizer, algo a compartilhar com Vocês, agora. Apaixonadamente.
Apresento-me, então, como Professora, aposentada da UFC, regente de coro,
compositora e estudiosa das relações da arte como uma força presente no
processo de formação humana.
Coube
a mim, neste Seminário, tratar da questão da relação da Música no Processo
Educativo.
Quero iniciar-me neste tema com as
palavras do chileno Rolando Toro Acuña
(filho do criador da Biodança). Biodança é um processo de Educação
Biocêntrica.
“MINHA OBRA PRIMA”.
Minha obra prima pode
ser uma causa ou uma obra de arte. A obra prima mais importante que um ser
humano pode fazer é a sua existência. Pode fazê-la luminosa e cálida, fazer uma
existência feliz. Passar pelo mundo dando o melhor de si, passar pelo mundo
deixando a sua marca e que ela seja de solidariedade e ajuda. Passar pelo mundo
amando, passar pelo mundo cuidando da vida. A obra prima maior que um ser
humano pode fazer é fazer da sua vida um exemplo pra si mesmo, de coerência com
seus sentimentos e emoções. Escutando seu coração, escutando, sempre escutando.
Ser auto referencial neste planeta é difícil. As pressões são muitas para
agradar gregos e troianos. Mas Você não é grego nem troiano. E terá que fazer a
sua vida do jeito que você ache conveniente e permitir-se errar quantas vezes
seja necessário para descobrir o caminho certo. Suas decisões deverão partir de
seu coração e serão escutadas por você, serão tomadas muitas vezes cheias de
dúvidas. Mas as terá que tomar, com risco de se machucar, com risco de machucar
os outros. Sua obra prima tem muita dor e muita alegria, sua obra prima tem
muito desespero e incertezas, sua obra prima tem muito sangue correndo por
dentro, tem muitas dúvidas e a certeza absoluta que quer ser um quadro final de
beleza e encanto, sua obra prima lhe custará choro, lhe custará a vida, mas a
vida é sua maior obra prima, sua vida é o que você pode fazer como uma obra
prima. Ter uma vida com doçura, prazer, encanto e felicidade. E para isso tem
que passar pela morte e vida, por provas que não gostaria nunca de passar. Tem
que enfrentar todos os seus medos e sempre continuar em frente. Só Você sabe
como lhe tem custado ser feliz. Só você sabe como lhe tem doído o coração e
como ainda algumas vezes lhe dói. Mas uma obra prima não tem espaços para
falsidades e mentiras. Deverá encontrar-se consigo mesma”.
Eu quis começar com este pensamento de
Rolando Toro Acuña, porque este pensamento traz, contida em si, uma nova
subjetividade, que induz a outros desafios e ao aparecimento de teias de
possibilidades gestadoras de vida, e vida em abundância.
E o que é vida?
Vida é movimento. Movimento é a ausência
de morte. É tanto que a morte material traz sempre em si um enrijecimento que a
delata e a configura.
Nós somos estas criaturas humanas,
minúsculas e frágeis, com uma história milenar, ante este infinito cosmo. Cedo,
começamos a aprender a perceber nosso contorno e nosso entorno. Cedo, começamos
a aprender a nos dizer. Cedo, começamos a aprender a questionar, a querer saber
os porquês da vida.
Com um corpo material, mente fluida como
os 75% de líquido que compõe este corpo material, somos antenados. E é através destas antenas que sentimos o
mundo. Nossas antenas ouvem, vêem, cheiram, degustam, tateiam e, força vital,
conspiram a vida quase que antevendo, como profetas, a próxima jogada.
Ajuda-nos a criar, a inventar o próximo passo. A audição, a visão, o olfato, o
paladar, o tato e aquilo que agora chamamos de Sexta Visão, o nosso sexto
sentido, nossa intuição, como antenas, vão dando amplitude àquele pequeno e
frágil corpo. Corpo estruturado em forma de cabeça, tronco e membros, com todos
os seus elementos estruturantes somados àquelas forças vitais que almificam a
matéria com forma de corpo humano, ao qual, por nossas ações, damos-lhe
humanidade. Neste planeta, alma é corpo, corpo é alma. E estes são elementos indivisíveis.
Nós, criaturas humanas, minúsculas e
frágeis, conviventes e viventes, navegantes deste planeta, componente deste
todo caóticamente orgânico que chamamos cosmo, sentindo este mundo, nele
interferimos, criamos e damos continuidade à história da espécie humana. Temos
necessidade de criar e recriar estratégias para organizar a dinâmica caótica da
vida e diminuir nossa angustiante insegurança de estar no mundo sendo do mundo.
É assim que nós, seres da natureza do
planeta terra, seres do cosmo, fazemos nos seres de cultura, da nossa cultura.
Seres dominados pela cultura, seres criadores, modificadores, destruidores de
cultura. Quando nascemos, como diz Agnes Heller, únicos e inigualáveis, carga
genético-biológica, nada poderemos prosseguir ser sem particularizarmo-nos num
determinado entorno onde somos recém nascidos. Imediatamente, somos absorvidos
pelas regras dominantes deste entorno, a cultura daquele local. De
criatura/criação humana inter relacionada com a natureza do planeta, passamos a
Seres, agora, particularizados. Em determinados tempos, diante de determinados
eventos, vamos aprendendo a ser nós mesmos, vamos notando se somos felizes, se
encontramos satisfação no mundo onde passamos a habitar. Vamos aprendendo a
estarmos prontos para aprender, com nossa sensibilidade inteligente. Sentimos
necessidade de aprender a mudar aquilo que nos é desconfortável neste entorno
que é o mundo cultural. E, assim como somos dominados por este entorno
cultural, através de processos de aprendizagem, assim, também, deveremos
aprender a mudar aquilo que não nos constrói, não nos satisfaz, tanto
individual como coletivamente. Passamos, então a criar processos de mudanças,
que vão se institucionalizando, na medida que são aceitos por uma coletividade.
Foi e é assim que em determinado tempo, gestamos os processos educativos, os
processo pedagógicos. Gestamos e institucionalizamos este processo como um
projeto humano, um projeto social.
Não vou falar, aqui, da história da
educação. Deixo tal feito para outras ocasiões. Falarei aqui, de sonhos, de
projetos ainda não institucionalizados, mas já nascidos e ativados.
O processo educativo, todo ele, é um
processo dialético, onde a tradição e a novidade devem fluir lado a lado. O
novo deve ser o velho que, cansado de assim o ser, renovou-se. Assim, o novo é
o velho que virou criança, ao invés de caducar. Um velho assim, certamente
estará contido no novo. No processo, no projeto educativo do qual falo agora,
com o qual sonho agora, o indivíduo é sujeito deste processo, sujeito
professor, sujeito aluno, sujeito pai, sujeito mãe, sujeito trabalhador,
sujeito habitante do entorno onde se desenrolam as ações educativas. E neste
contexto, cada indivíduo é um ser único e insubstituível. Para tanto, basta que
todos aprendam, apreendam, compreendam, vivam como seres que sabem
compartilhar, que fazem compartilha com o outro, seu igual. Estes são os
movimento centrais do processo educativo que eu sonho. Do processo educativo de
um novo tempo. Um processo que nos fará aprendizes da compartilha, seres
solidários. Um processo que nos deixará anos luzes distantes de todo consumismo
banal, um processo que pode nos deixar livres do afã de acumular experiências e
coisas mal sãs. Um processo educativo que nos fará aprendizes de uma autonomia
que se heteronomiza. Estou, assim, usando, a terminologia de Alfonso Quintás.
Autonomia e heteronomia são o chão, o caminho do novo processo educativo, o
processo para um novo tempo. Um processo que redescobre na arte um grande
exercício de formação humana. Assim, no mundo cultural pleno de diferenças e
complexidades, retorna-se à descoberta da arte como uma das grandes
estratégias, uma das mais ricas, de exercício de humanidade. Não mais só para
ser admirada, mas para ser exercitada no dia-a-dia de nossa humanidade. A arte
é um dizer expressivo da criatura humana, um exercício de autonomia que só
encontra sentido na heteronomia (no encontro com o outro, meu diferente). A
arte é a prova de que a criatura humana que a criou e gerou aprendeu a mostrar
para fora de si, o seu entendimento sobre o mundo vivido, através daquela
expressão criada, que só ganha ou ganhará sentido no outro, se sentida pelo
outro, o diferente de mim. O artista criador, pela obra de arte, traz para o
momento presente do outro, numa relação comunicativa, algo que simboliza uma
ausência sentida e expressa. Foi assim que a criatura humana em suas relações
históricas criou a arte, que, antes de ser linguagem, é expressão, é forma de
expressão. Criou-se a obra de arte, que, fora de cada um de nós, ganha vida
dizendo-nos algo que alcançamos pela nossa sensibilidade. Mas, neste tempo de
agora, a obra de arte somos cada um de nós, que temos de aprender, pela
convivência com a obra de arte, pela vivência com a criação artística, a fazer
de cada um de nós uma obra de arte, aquela obra prima de que fala Rolando Toro.
Existem as artes plásticas: a pintura, a
escultura, a arquitetura; a arte sonora: a música; as artes cênicas: o teatro,
a dança; a arte cinefotofonográfica: o cinema e todos os seus derivados. Faço
esta divisão por uma necessidade didática, de explicação. Porque a
materialidade estruturante de cada arte é que vai fazê-las distintas. E existem
muitas outras formas didáticas de arrumar o mundo das expressões artísticas. E,
na maioria das vezes, na vivência da criação artística, buscamos a não divisão,
vivência de uma arte total.
E bem aqui, entro no meu tema principal,
a música.
A música é uma criação cultural destes
seres, criaturas humanas, sujeitos históricos, agentes de seu tempo vivido. A
música e as demais artes. Cada arte depura, regula, aperfeiçoa, constrói ou
desenvolve uma das antenas do corpo humano. A música é a estratégia de
regulação da antena auditiva, que se completa pela dimensão fonadora daqueles
homens e mulheres que compartilham este planeta entre si. A música é filha da
necessidade de se dizer e irmã da vontade de entender o outro, meu igual. A
música e todas as artes.
A ciência, hoje, aponta que um ser
sem audição (aqui, falo da audição biológico-espiritual) tem quarenta por cento
de redução em suas possibilidades em relacionar-se com o mundo. Aqui, também,
vale salientar: o centro da audição é o ouvido, mas é o corpo inteiro que ouve,
pois o corpo inteiro vibra no momento da audição. Já se pode vislumbrar, aí,
uma possibilidade de ampliação da capacidade auditiva e aqueles quarenta por
cento acima referidos, certamente, estarão reduzidos.
O homem é matéria em movimento,
vivente em um determinado espaço físico geográfico. Ao movimentar-se neste
espaço, cria o tempo. O tempo é, então, criação humana. O tempo é uma forma de
viver que a criatura humana criou. Percebemos o tempo do homem, porque ele tem
forma. Percebemos tudo que existe na natureza, quando aprendemos a descobrir
como as formas se expressam.
Tudo que o homem cria é a sua imagem
e semelhança seja é matéria em movimento em um determinado espaço, com um tempo
determinado. Tudo que o homem cria, então, tem forma.
A música, sendo criação humana,
maravilhosa criação humana, tem, ela também, forma determinada. Uma forma musical
de expressão humana. Uma maneira cultural de expressão. Só é percebida quando é
expressão, quando é dita, seja, quando tem forma determinada por um criador,
alguém que quer dizer algo, musicalmente. A música deve ser filha de rituais –
de plantação, de colheitas, de morte, de nascimentos? De guerra? De dores? Sim,
certamente, foi numa hora destas, hora de ritual coletivo, quando alguém ou
alguns, afogados de sentinências e sentimentos, explodiu num gemido, num som
profundo e profano, num som diferente. E todos sentiram-se confortados e em
êxtase com aqueles sons. E, VIVA!, surgiu a música! Teria sido assim.
A música tem em si elementos
estruturantes dela, elementos que lhe dão musicidade. Estes elementos são
componentes da forma musical. Organizados conforme a necessidade de quem está
expressando sentimento, dão as possibilidades expressivas da música e podem
fazer dela uma linguagem. E como linguagem, torna-se instrumento de libertação
ou instrumento de dominação.
Como a música é instrumento de dominação
ou de libertação ?
Pelos seus componentes estruturantes,
aliados a outras formas de linguagem e aos modos de dominação política adotados
em um tempo local.Quais seriam os elementos estruturantes
da música, aquela dimensão que dá à música a sua musicidade?
Os teóricos da música dizem,
unanimimente que estes elementos são:
O
SOM – que é algo que vibra sonoramente e nos atinge quando as vibrações são
levadas através do ar, na forma de ondas sonoras, que se espalham
simultaneamente em todas as direções e acabam por atingir a membrana do nosso
tímpano, fazendo com que ela (a membrana), também, se ponha a vibrar. Esta
vibração, transformada em impulsos nervosos, é transmitida ao cérebro. O
cérebro identifica-a, e a gente passa então a sentir os diferentes tipos de
sons. Estes sons são identificados pela nossa memória – lembram, daquela
história de se particularizar nas regras vividas socialmente pela comunidade
onde se nasceu? – pois estavam lá guardados, guardados pelas nossas fantasias,
por nossa imaginação. Estas explicações são dadas pelo saber científico da
Física, pela saber científico da Psicologia, pelo saber científico da
Antropologia, da Sociologia. Uso-os, aqui, assim, à vôo de pássaro, para dar
uma primeira idéia de como a música pode nos atingir, antes mesmo que nosso
raciocínio comece a funcionar. Antes que a gente perceba, por um ato de
imaginação que move nossa memória, qual o som que estamos ouvindo, toda nossa
massa líquida corpórea que significa 75% de nosso corpo já está a vibrar,
atingida por aquelas vibrações sonoras que se espalham simultaneamente em todas
as direções, até atingir nossa antena auditiva. É o milagre do SOM.
Um
outro elemento estruturante da expressão musical é o VOLUME, também chamado de
INTENSIDADE – a força daquelas vibrações sonoras da qual falamos agora há
pouco, determina a amplitude, o volume, a intensidade do som. Se o som tem
entre 16 a 20 vibrações por segundo, até 20 000 vibrações por segundo, podemos
ouvi-lo. Claro que outros animais ouvem vibrações menos ou mais intensas que
nosso pobre ouvido. O cachorro, por exemplo, que ouve além das 20 000 mil
vibrações. É por isto que o pobrezinho chora tanto quando ouve um som agudo,
por exemplo, o som da flauta. Seu ouvido sensível, chega a doer de tanto ouvir.
Pela intensidade do som, pelo volume do som, antes mesmo que nossa imaginação
impulsione nossa memória e nos faça raciocinar, nosso batimento cardíaco já é
atingido, e já se altera. E já ficamos diferentes sem termos consciência do
porquê disto.
Um
outro elemento estruturante da expressão musical é o TIMBRE – toda vibração
sonora tem uma origem, um instrumento que a produz: voz humana ou instrumento
de sopro, percussão, instrumento percutido, de sopro, de metal, dedilhado etc.
Antes que nosso raciocínio se ponha a trabalhar, nosso humor já é atingido pelo
timbre da música que nos alcança.
O
outro elemento estruturante da linguagem musical é a DURAÇÃO – que determina a
forma espacial onde o som vai acontecer, vai vibrar. Se é som curto,
prolongado, picotado, segmentado, longo, breve etc. Pela duração, o espaço sonoro ou é dividido
simetricamente, organizado por impulsos (organizados em forma de pressões que
causam tensões e relaxamentos) ou sem simetria ( quando o som se deixa levar,
sem regras, sem amarras e vôa solto, como a água descendo a cachoeira). A
organização do espaço, da forma sonora, pode ser feita através de pressões ou
tensões que se alternam entre pressão mais forte alternada com outra mais
fraca. Ex: a batida de uma música baiana, de um bolero, de uma canção italiana.
Mas pode ter outra lógica que não a da pressão alternada de forte e fraca. O
som vai fluindo livremente, como acontece com a música indiana, por exemplo. Em
qualquer dos casos, antes que nosso raciocínio se ponha a nos comandar, nosso
corpo já é impulsionada conforme o mando da tensão ou relaxamento causado pelas
vibrações rítmicas da música ou do fluir sonoro livre de pressões.
Há, ainda, outros elementos que compõem
a estrutura da expressão musical, como a harmonia, o estilo, o gênero. Mas estes
são elementos que vão ampliar as qualidades estéticas e sonoras da criação, mas
que não compõem a sua estrutura legitimadora, aquilo que dá características de
musicidade à música, fazendo-a ser musical e não outra forma de expressão.
Eis as bases da força expressiva da
criação musical. Ela, usando uma expressão bem popular, emprenha a criatura
humana pelo ouvido.
Uma criação assim, com tal força
expressiva, pode amordaçar ou libertar a criatura humana. Conforme seu uso,
pode ser força dominadora de destruição da consciência de tempo individual e
coletivo, como pode ser importante elemento de libertação, exercício de ação
consciente, de busca de entendimento do mundo.
Como? Isto poderá ser tema de um outro
momento de conversa. Por enquanto é só.
*
Palestra do
dia 10 de novembro de 1999, Auditório Castelo Branco, no SEMINÁRIO “NÓS XXI:
Subjetividades, Desafios e Redes”, promovido pela Pró Reitoria de Extensão da
UFC.
*Professora, escritora, poeta, compositora,
arranjadora e regente.