Por Izaíra Silvino*
“A
arte de saber ouvir”, título deste seminário, com certeza, foi concebido por
uma mente sadia, em um momento de graça. Num mundo de tanto barulho, num tempo
de tanta bagunça, com espaços locais tão enredados em confusões, saber ouvir e
ouvir a partir de uma estética de querer ouvir, de repente seria utopia
inalcançável. E já teríamos um bom tema para um debate. Então, alguém se
lembrar de remar contra essa maré, é bendito. E que bendito seja!
Não
seria eu a palestrante-conferencista-animadora de hoje. Meu nome não foi
pensado no momento da organização do seminário. Mas a vida desencaminhou a
professora que aqui viria, empurrando-a para outros espaços e me entregou o
desafio de aceitar estar aqui, agora. O Pe. Alexandre, que eu nem conhecia
antes, telefonou-me num momento de agruras. Ouvi seu convite e, principalmente,
sua preocupação por o terem deixado assim, na mão, às vésperas deste dia.
Aceitei seu chamado. Este tema sempre me atrai. OUVIR. SABER OUVIR. OUVIR COM
ARTE.
Então,
ainda no ritmo e ao som da surpresa da missão que aqui me trouxe, eis me
tentando trazer ao tema do seminário, uma abordagem musical.
Há,
no mundo, muito o quê se ouvir. O mundo em que vivemos, tem seu som. O som do
mundo, creio, é um continuum ensurdecedor. Um bloco sonoro impossível de ser
ouvido: retumbante, inimaginável. Não temos referência para pensar numa idéia
assim. Mas estamos nele mergulhados, de corpo, alma e divindade. Fechemos os
olhos e imaginemos o maior bloco sonoro que a gente poderia pensar. Ainda aí,
não poderíamos ter idéia de como seria o som do mundo.
– Vamos,
então, experimentar, cada um fazer um som meio que taciturno, fofo, em altura
média. Assim... UMMMMMMM. Todos ao mesmo tempo.
... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ...
Deve
ser mais ou menos assim o som no qual estamos mergulhados, nós todos os
habitantes deste planeta. Mas num volume intenso, inimaginável, como já
acentuei. Um som ensurdecedor. Se pudéssemos ouvir este som, certamente,
seríamos esmagados por ele. Implodiríamos. Nosso ouvido está organizado para
ouvir a partir de 16 a 20 vibrações por segundos, até o máximo de 20 000
vibrações por segundo. Abaixo disto e acima disto, o ouvido humano não percebe.
Outros animais podem perceber.
Nós ouvimos,
também, porque o som tem volume. O volume do som sensibiliza e desafia nossa
capacidade auditiva. Também, podemos chamar o volume de intensidade. Além do
limite que nossa capacidade de ouvir nos impõe, precisamos, também, ter a intenção
de ouvir, para, de fato, ouvir com consciência. Sim, porque, a gente ouve muita
coisa, mas a gente não se apercebe conscientemente, por não estarmos com a
intenção de ouvir.
Quando a gente chega a este planeta, com o
espírito vestido de corpo (esta forma que nos faz perceptíveis e percebíveis) a
gente começa a aprender a ser alguém e fazer coisas. Ouvir e saber ouvir é uma
das coisas que começamos a aprender. O ato de ouvir é um dos nossos primeiros
esforços de aprendizagem.
(Cantando): Dorme nênên
Que eu tenho o
que fazer
Vou lavar vou
engomar
Camisinha pra
Você
Ah ah ah ah ...
Oh oh oh oh ...
Bicho papão
Sai de cima do
telhado
Que é pra ver
se essa criança
Dorme um sono
sossegada
Ah ah ah
Oh oh oh ....
Meu S. José
Acalentai este
menino
Que a noite é
tão grande
E ele é tão
pequenino
Ah ah ah
Oh oh oh ...
(canção folclórica do meu tempo de criança)
Naquele
momento, todos os sons que ouvimos soam como nossos acalantos. Assim,
aprendemos a saber quando a mamãe, o papai ou outra pessoa chega e com quê
humor se aproximam. O volume do som, o jeito de dizer de cada um, já nos
informa o que queremos saber. Assim, a gente aprende a descobrir, cedo, que
dando aqueles grunidinhos milagrosos, longos e renitentes, logo alguém vem nos
pegar. E como é bom... O que quer dizer... o outro que nos atende, também
escuta! Que bom! A capacidade expressiva nos surge e nós começamos a ouvir
alguém ou algo e dizer para que alguém possa nos ouvir. Não estamos mais
sozinhos!!!!!!
(Cantando): A primeira pessoa soa como eu sou
A segunda
pessoa soa como tu és
A terceira
pessoa soa como êle
Ela também
Toda pessoa
soa
Toda pessoa
boa e soa bem (de Bené Fonteles).
Será
que nossa atitude de ouvir ainda possui aquela mesma atenção, encantamento e
curiosidade daqueles nossos tempos de nênên? Será que ainda necessitamos e
queremos ouvir daquele modo? Será que ainda aguardamos ansiosamente os sons que
nos trarão felicidades ? Será que ainda choramos ante os silêncios prolongados
daqueles que nós queremos bem?
Aprendemos a
perceber o mundo através das antenas que nosso corpo tem. Chamamos estas
antenas de “sentidos”. A humanidade criou maneiras para exercitar estes
sentidos. Maneiras várias e múltiplas. As manifestações artísticas constituem
um desses exercícios. E a música é o exercício que poderá nos motivar a querer
ouvir com mais qualidade, a saber ouvir com mais consciência, a aprender a
ouvir a beleza dos sons que nos chegam. Assim, a música é filha da nossa
necessidade de se dizer e irmã da nossa vontade de escutar o outro, meu igual,
para aprender a saber sobre ele e o mundo.
Isto tudo quer
dizer que necessitamos fazer exercícios para aprender, para incorporar os
conhecimentos que estão no mundo. Para conhecer e reconhecer as coisas do
mundo. Para criar hábitos, adquirir competências e aprender a ser autor de atos
eficazes e amorosos de saber ouvir. Assim, aprendemos a exercitar nossa
capacidade de sentir. Escutar o outro é aprender a escutar a nós mesmos. É um
ato compartilhado onde um está no outro e vice-versa. É uma atitude de vida. Um
jeito de ampliar nossa capacidade de sentir sentindo.
(Cantando): Ô cai ô sereno ô caio
Dos gaios da
bananeira
Ô cai ô sereno
ô caio
Nos braços da
jardineira
Mandei fazer
um relógio
Dos cascos da
bananeira
Para contar os
minutos
E as horas que
eu num te vejo
Quando eu meto
o remo n’água
E apanho areia
do fundo
As menina vão
dizendo
Lá vem beleza
do mundo (canção de trabalho dos barqueiros do Rio S.Fco.)
Vamos aprender
a última estrofe deste canto dos Barqueiros do Rio S. Francisco. Vamos ouvir e
após ouvir, vamos repetir. Observaremos como estamos ouvindo e o quanto vamos
reter na memória a partir do que ouvimos. Na memória e na imaginação. Quando a
gente ouve os outros, quando a gente ouve o mundo, a gente adquire elementos
para analisar nosso entorno e aprender a conhecer e até a amar tudo o que nos
envolve. Porque nossa imaginação e nossa memória nos movem, impulsiona-nos à
ação.
A ciência,
hoje, aponta que um ser sem audição (e, aqui, falo da audição biológica que é,
também, nossa audição espiritual) tem sua capacidade e possibilidades de
relacionar-se com o mundo, reduzidas em quarenta por cento. Aqui, também, vale salientar: o centro da
audição é o ouvido, mas é o corpo inteiro que ouve, pois o corpo inteiro vibra
no momento da audição. Então, já se pode vislumbrar, aí, uma possibilidade de
ampliação da capacidade auditiva.
Como a música
nos ensina a ouvir?
Cantemos este
Cânone:
Viva o sineiro
da matriz (bis)
Todo dia toca
Contente e
feliz
Este musical e
sagrado som
Dim dim dim dim
dim
Dim dim dom
dom dom (repete) (autor anônimo)
Vamos ver,
agora, destrinchando este cânone, alguns dos elementos que a música possui.
Elementos que fazem com que ela seja música, com que ela seja expressão
musical. São certas propriedades que o som possui, para que possa ser
reconhecido como som musical (a Física nos ensina isto). Vamos ver.
O elemento
material que faz a música ser música é o SOM. O som desloca-se no espaço e é
percebido por nós através da nossa audição. Eis o exercício básico. O som, já é
percebido pelo nosso corpo, antes mesmo de a gente possa pensar nele, antes de
a gente percebe-lo com a razão. Por que? Porque o som é vibração. Setenta e
cinco por cento do nosso corpo é constituído de massa líquida, dizem os
cientistas. O som faz vibrar qualquer matéria, umas mais, outras menos. O som
atinge a massa líquida com muito mais facilidade, assim, ele vibra intensamente
numa massa líquida, assim ele vibra intensamente em nosso corpo. Antes que o
ouvido leve a mensagem ao cérebro, através do sistema nervoso e nosso cérebro
responda reconhecendo o som através de nossa memória e de nossa imaginação (...
daí a gente diz... é a música tal, fulano é quem canta...ou, ainda, ... que
música é esta? ... ) antes disto, todo nosso corpo já vibrou com o som. O som
já nos chegou. Agora, o som tem forma, como nós também temos. O som, como
música, chega-nos, quando tem seu corpo configurado pela mente do compositor.
Foi por isto que a gente, aqui, hoje, gravou o Sineiro da Matriz e, após
algumas repetições nossa imaginação descobriu, ali, elementos que fizeram nossa
memória guardar o Sineiro da Matriz. O elemento principal foi a FORMA da
canção, o corpo. É assim, que a música
é, para nós, um exercício de audição, ela nos ensina a ouvir. Pela audição, ela
bate às portas de nossa imaginação e nos faz reter na memória tudo que nos
atinge. Você pode alcançar o que seja isto? Quando estamos no útero de nossa
mãe, já aí, estamos aprendendo a ouvir, porque quando o som vibra no corpo
dela, claro, nós sentimos, pois estamos envoltos naquela massa líquida, naquela
piscina natural onde estamos, naquele momento, habitando. É assim que a gente
vai aprendendo a guardar o som com a gente, mesmo quando ele já não está mais
vibrando em nossa massa corpórea. É o milagre da audição: umas das formas de
encontro com o mundo, uma das formas de encontro com os outros. Daí, a gente
aprende a se dizer, guardando o que se ouve e repetindo a forma que se ouviu,
da forma que se ouviu.
Mas não é só
porque a música tem som que ela nos exercita a ouvir, não. Na música há outros
elementos contidos nela que dão mais força a sua tarefa de exercitar nossa
capacidade de ouvir.
Como?
Todo som tem
intensidade. A intensidade do som atinge, diretamente, nosso corpo.
Ah! O que o
mundo moderno faz com esta intensidade!?... Alguns instrumentos do mundo
moderno nos dominam inteiramente através da intensidade. Calam-nos e nos
encurralam e acomodam num silêncio inteiramente atribulado de ruídos. É só
pensar no som de um “trio elétrico”, por exemplo. O proprietário daquele
instrumento monumental, nem nos conhece, nem sabe nossos atos, desconhece o que
estamos sentindo. Mas, mesmo assim, pela força da intensidade do som, ele
desrespeita nossa intimidade e nos domina, nos cala, nos amordaça com aquele
volume quase ensurdecedor. Fica no limite do suportável por nossa capacidade
auditiva e nos domina e cala. Na maioria das vezes, acorbertados pela
“legalidade” de nossas leis. Ta vendo? Esta é uma das propriedades que o som
tem, que nos atinge, ensina-nos a ouvir ou obriga-nos a calar.
É pela
intensidade do som que, também, sabemos quando alguém nos fala com amor,
brandura, violência ou ira.
É GOOOOOL DO
FLAMEEEENNNNGO!!!!!!!!
Gritam os
torcedores de um jogo no estádio, gritam de alegria ou raiva. O povo brasileiro
sempre escolheu a música para ajudá-lo a vibrar de alegria, dor, raiva,
tristeza... Mengoôôôô... É mengôôôô ... Também, usa o ruído (que é som) para se
desgostar... Daí, aquela vaia que a gente já conhece ...
É, o som
ensinando-nos a ouvir e reagir.
Uma outra
propriedade que a música tem, outro elemento estruturante da musica, é o TIMBRE
– toda vibração sonora tem uma origem, um instrumento que a produz: voz humana,
um instrumento que imita o som do corpo ou da natureza. Violão, violino,
tambor, pandeiro, palmas. Antes que nosso raciocínio se ponha a trabalhar,
nosso humor já é atingido pelo timbre da música que nos alcança. É só a gente
lembrar em nosso cotidiano, como há tipos de sons de músicas que nos agitam ou
que nos acalmam. Pelo timbre, a gente vai aprendendo, desde pequeno (lembram, a
gente, no berço, reconhecendo nossa mãe, que traz conforto?) a perceber a
qualidade sonora daqueles e daquilo que ouvimos.
O som, também,
tem duração. A DURAÇÃO é, então, outra propriedade do som, outro elemento do som.
A duração determina a forma espacial onde o som vai acontecer, vai vibrar. É o
som ocupando um espaço no mundo, para que a gente possa ouvi-lo. O som se
movimenta no espaço e chega até meus ouvidos.
Se é som curto, prolongado, picotado, segmentado, longo, breve etc. Pela duração, a gente, também, pode
reconhecer a organização do “tempo” da música. Pela duração o tempo vai se
organizando em forma de tensões. Estas tensões trazem reações – a não tensão –
assim, o espaço é ocupado pelo desenho sonoro, o movimento sonoro, que, já
vimos, tem forma. Pela propriedade da duração, organiza-se o ritmo, o movimento
sonoro, através de impulsos fortes ou mais fracos, através de pressões ou
tensões que se alternam entre pressão mais forte alternada com outra mais fraca
(ex; a “batida” de uma música baiana, batida de uma valsa, batida de um hino
etc...). Mas há músicas que podem ter outra lógica que não a da pressão
alternada de forte e fraca. O som vai fluindo livremente (ex: música indiana).
O importante é saber que, pela audição, antes que nosso raciocínio se ponha a
nos comandar, nosso corpo já é impulsionada conforme o mando da tensão ou
relaxamento causado pelas vibrações rítmicas da música ou do fluir sonoro da
música livre de pressões. E a gente começa a se balançar, sem nem notar. Nosso
corpo começa a se movimentar, atingido pelo movimento do som musical. Assim, a
gente vai aprendendo a ouvir, selecionando o que nos agrada ou não. A duração
musical mexe com o nível de nosso equilíbrio rítmico, com nossa energia. Por
ela, nosso corpo inteiro ouve e reage.
A música tem
força sobre nosso corpo e nossa mente. Educa ou deseduca, liberta ou nos prende
em garras de agitação que podem nos inquietar. Ensina-nos o valor da capacidade
de ouvir. E o ato de ouvir faz nos sair do lugar, move-nos, faz-nos ativos. Se
a gente está atento para exercitar nossa capacidade auditiva, podemos
transformar nosso ato de ouvir numa
postura artística. Ouvir com arte, quer dizer, ouvir com nossa sensibilidade,
compartilhar com amor e serenidade esta capacidade. Estar aberto, estar pronto
para ter a liberdade de ouvir e, assim, estar acorrentado ao bem estar de quem
nos diz algo.
Uma criação
assim como a música – a depender da forma como interage conosco – pode nos
tornar militante do bem, sendo importante elemento de libertação, exercício de
ação consciente, de busca de entendimento do mundo Como, também, pode ser força
dominadora, fonte de destruição de nossa consciência. Nossa consciência de
tempo, de tempo individual e de tempo coletivo.
São muitos os
caminhos de aprendizagem da arte de ouvir. A música é um deles.
(Cantado):
Ontem um menino
Que brincava
me falou
Que hoje é
semente do amanhã
Para não ter
medo
Que esse tempo
vai passar
Não se
desespere, não
Nem pare de
sonhar
Nunca se entregue
Nasça sempre
com o amanhã
Deixe a luz do
sol
Brilhar no céu
do seu olhar
Fé na vida fé
no homem
Fé no que virá
Nós podemos
muito
Nós podemos
mais
Vamos lá fazer
o que será. (Roberto Carlos).
Aprendendo a
ouvir, aprendemos a estar com o outro. Aprendendo a ouvir, aprendemos a nos
prolongar no outro e ser com o outro. Aprendendo a ouvir, movimentamo-nos para
construir a vida. Isto é aprender a ser humano.
Ouvir é uma atitude estética de ser ou pode ser...
A música pode nos ensinar isto. Ou não.
*Professora, escritora, poeta, compositora, arranjadora, regente,
- Feito para o Seminário A ARTE DE OUVIR, da Paróquia do Quintino
Cunha, em Fortaleza-Ce, a convite do Padre. Alexandre de Paula. Na
atividade do dia 28 de nov. de 2001.