Por Aline Carvalho*
“Que acontece quando se solta uma
mola comprimida,
quando se liberta um pássaro,
quando se abrem as comportas de uma
represa?
Veremos…”
Gilberto Gil
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar de
que forma o contexto vivido pela chamada “geração de 70” repercute hoje em
políticas culturais, mais especificamente no Ministério da Cultura, em ações
como a Cultura Digital e os Pontos de Cultura. Buscando marcas “contraculturais”
na atualidade, a proposta é identificar traços do pensamento daquela época
hoje, em novos contextos.
Esta proposta se justifica pela chegada
ao Ministério da Cultura do músico Gilberto Gil, uma das principais figuras do
cenário contracultural da década de 60/70. Ao entrar para o MinC, Gil montou
uma equipe formada por artistas, antropólogos, “companheiros da contracultura”
e também uma geração jovem, que possibilitou de forma processual maior abertura
e ousadia na atuação deste Ministério – não sem esforços e críticas. Em sua
gestão, continuada hoje pelo atual Ministro Juca Ferreira, o MinC implementou
uma política cultural no sentido de realizar uma profunda transformação no
conceito de cultura e no papel do poder público em relação à sociedade e às
políticas de fomento à produção. Este artigo é um desdobramento da pesquisa “Produção de Cultura
no Brasil: Da Tropicália ao Pontos de Cultura”, onde
busquei analisar a cultura brasileira sob a perspectiva de sua produção,
fazendo um paralelo entre as motivações políticas e estéticas dos anos 60 e
hoje.
Entendendo a história como uma
construção social, processual, busca-se aqui estabelecer um paralelo entre
estes dois contextos, a fim de melhor compreender a atual política cultural,
suas potencialidades e defasagens. Segundo o historiador da “New Left” inglesa
Christopher Hill, “os historiadores se interessam pelas
ideias não apenas porque elas influenciam as sociedades mas também porque são
reveladoras das sociedades que criaram”. Assim, o contexto político e
cultural da década de 60 e 70 que formou aquela juventude pode ajudar a melhor
entender como se dá a atuação dos jovens atualmente, através de políticas
culturais fomentadas por aquela geração, hoje, enquanto gestores.
Introdução
O Brasil e sua cultura aparecem hoje em
capas de revistas, jornais e, principalmente, blogs, twitters, facebooks,
myspaces e toda a infinidade de possibilidades de comunicação web a fora… Por
que esse pais ao mesmo tempo tão rico e tão pobre, com uma imensa diversidade cultural,
religiosa, social, econômica e politica apresenta tamanha assimilação e
abertura para o mundo digital?
Podemos dizer que a criatividade
brasileira, de certa forma, é uma questão de sobrevivência, pois ambientes
inóspitos e diversos muitas vezes dão lugar a soluções coletivas e inovadoras.
Para além do estereotipo carnavalesco ao qual o Brasil já foi muitas vezes
relacionado, o pais hoje alcança uma projeção internacional singular em sua
ainda recente historia. Essa assimilação da diversidade – ou pelo menos sua
inegável existência – remonta ao processo de colonização, que teve
desdobramentos diferentes dos outros países das Américas. O choque cultural e a
miscigenação racial entre os índios que aqui já estavam, os europeus que
chegavam e os negros africanos que eram trazidos como escravos, coloriram desde
a raiz esse povo que aos poucos começava a se constituir como “Brasil”. A vinda
da corte para a colônia e o processo de independência do pais tiveram
desdobramentos como, por um lado, a permanência de um enorme território
unificado e, por outro, processos políticos e sociais como a corrupção e a
burocracia estatal. Nesta perspectiva histórica, se o Brasil do século XX
buscava através da cultura uma “identidade nacional” a partir de movimentos
como o Modernismo, o teatro politico, e a MPB, hoje esse Brasil começa a
se “desvendar” a partir de sua própria diversidade, entendendo esta miscelânea
de referências como um traço identitário nacional. Para Gilberto Gil, “Naquele
instante haviam os fragmentos identitários, os vários povos, as varias gentes
brasileiras, e precisava a partir disso criar uma identidade nacional, o grande
dilema era exatamente como colocá-los todos num cesto, e a partir daí decretar
uma identidade brasileira. Esse foi um dilema, um desafio, e uma
impossibilidade também, e essa é a questão ainda hoje”.
Arte politica e rock’n'roll
No início da década de 60, a produção
cultural brasileira encontrava níveis de experimentação e engajamento até então
nunca antes vistos no país, impulsionados pelo sentimento nacional
desenvolvimentista da era JK, das reformas de base que começavam a ser
rascunhadas pelo governo de João Goulart e pela esperança de revolução
socialista que rondava os ares da América Latina. Segundo a psicanalista Maria
Rita Kehl, “(…) as reformas sociais e
estéticas que se tentava implantar traziam ares de revolução para um país que
se modernizava tão tardiamente”. A chegada da ditadura militar
em 64 e o cerceamento da produção pelo regime autoritário foi um verdadeiro
“balde de água fria” para a vanguarda artística da época, que, entre
dissidências e rupturas, buscou de alguma forma adaptar sua produção àquele
novo contexto. Mas é apenas em 1968, quando é promulgado o Ato Institucional nº
5, que a censura veio a transformar mais radicalmente a cultura brasileira,
atuando principalmente em dois planos: na prevenção (com cortes e vetos à
produção artística e intelectual) e na punição (com inúmeras cassações,
expulsões e prisões, a maioria delas não justificadas). Luiz Carlos Maciel explica que “1969
já foi um ano diferente. Cada um foi para seu canto, o protesto ficou mais
quieto. (…) Desfez-se o sonho da eficácia política. Cada um entrou na sua”
A década de 70 foi marcada pelo
desenvolvimento econômico e o nacionalismo exacerbado, com a vitória do Brasil
na Copa do Mundo e o chamado “milagre econômico” que possibilitou a expansão da
classe média e a elevação dos padrões de consumo da sociedade. Paralelamente,
começa a se consolidar no Brasil a televisão, com a expansão da rede de
telecomunicações patrocinada pelo governo ditatorial, em busca de uma
“integração nacional”. O regime militar também enxergava a cultura de forma
estratégica, e a censura não se definia pelo veto a qualquer produto cultural,
mas sim por estabelecer uma “repressão seletiva” que separava o material
considerado subversivo daquele que serviria aos interesses ufanistas do regime
militar. Era então o terreno ideal para a consolidação de uma indústria
cultural que, com forte influência da cultura pop norte-americana e do
capitalismo começava a desenhar novos modos para produção cultural no país.
É neste contexto que se insere a
chamada “contracultura”: uma resistência aos modelos impostos pelo capitalismo
que, – embora também não fizesse a defesa do modelo socialista – criticavam de
uma maneira geral o autoritarismo e os valores burgueses, variando entre o
desbunde e formas mais especificamente politizadas. Em um momento de falta de liberdade
política, os jovens começavam a buscar outras formas de liberdade, fazendo uso
de drogas, ampliando suas experimentações sexuais e recusando o modo de vida
capitalista, realizando mudanças e questionamentos no plano do comportamento:“Ele sai à procura de
experimentos, não no campo minado e estreito da política nacional, mas no campo
fugaz e irônico do comportamento humano. (…) A ação de cada um/a é uma
performance, no sentido teatral do termo, em que o desejo torna-se o ator mais
eficiente na luta política contra a ditadura””.
É interessante observar que aquela geração
dava continuidade, de alguma forma, a um processo de descoberta da revolução
comportamental iniciado pela juventude pós 64, cuja grande parte saiu do país a
partir de 68 e se começou a se integrar a experiências contraculturais
principalmente na França, Inglaterra, e Estados Unidos. A Tropicália de Hélio
Oiticica, Zé Celso, Gil e Caetano, por exemplo, já havia experimentado o
rompimento com o modo tradicional de se fazer arte e política, com cabelos
desgrenhados, roupas chocantes e declarações perturbadoras (tanto para a
direita quanto para a esquerda). Entendendo sua ação comportamental como uma
ação política, a Tropicália propôs – e, de certa forma, conseguiu – incluir no
plano das discussões políticas questões do cotidiano que eram consideradas “pequeno-burguesas”
e “alienadas”, como o papel da mulher na sociedade, a liberdade sexual, a
homossexualidade e o amor livre.
A descoberta do uso de drogas
(principalmente maconha e LSD) para fins de “expansão do estado de consciência”
foi talvez o grande propulsor da produção contracultural, que reunia homens e
mulheres, brancos e negros, ricos e pobres em torno de um baseado no pôr do sol
de Ipanema. No plano artístico, o espírito da contracultura era traduzido
através da musica em uma linguagem mundial: o rock, com sua contestação ao
conservadorismo dos valores tradicionais; o folk, com seu pacifismo e sua
contundente crítica social; o blues, com sua melancolia que há décadas já
mostrava as contradições da sociedade norte-americana. A contracultura, de uma
certa forma, nasce com a inversão dos valores em relação à geração anterior –
enquanto uma estava preocupada em mudar o sistema na sociedade, a outra buscava
encontrar alternativas para suas próprias vidas no plano pessoal. A
marginalidade era a recusa ao modelo de vida da burguesia, à produção cultural
de massas, ao imperialismo ianque, aos tabus sexuais e comportamentais e ao
conservadorismo. Maria Rita Kehl conta que eram, em sua maioria, “jovens da
classe média que dispensavam o conforto da casa paterna pra viver sem carro,
sem telefone, sem televisão – esse era um ponto de honra pra nós – e muitas
vezes sem mesada. (…) Sabíamos que as escolhas da vida privada também são
escolhas políticas”.
Com o passar dos anos e a transição do
país para um regime democrático, diversos nomes que atuaram na resistência
contra a ditadura – tanto da “esquerda engajada” quanto da “cultura do
desbunde” – passam a entrar para a cena politica do pais: nestas eleições, por
exemplo, Dilma Rousseff (que atuara no movimento de guerrilha contra o regime
militar, sendo presa e torturada) é a candidata da esquerda para dar
continuidade ao governo de Lula e José Serra (ex-presidente da UNE) é o
candidato da mesma direita que, oito anos depois, tenta voltar ao poder.
Uma gestão tropicalista
Em 2003, contrariando qualquer previsão
política que pudesse ser feita há quarenta anos atrás, um metalúrgico
nordestino é eleito presidente do Brasil e Gilberto Gil é nomeado Ministro da
Cultura, surpreendendo igualmente artistas, acadêmicos e gestores da cultura.
Era grande a expectativa diante do fato de se ter no comando do Ministério
alguém do meio artístico – diferente do ministro antecessor na gestão
neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, o cientista político Francisco Weffort
-, e com uma trajetória um tanto polêmica como Gil.
O choque de se ter um “tropicalista” no governo perdurou por boa parte de sua
gestão (2003-2008), e sobre isso, Hermano Vianna explica: “é extremamente
necessário pontuar que a esquerda havia mudado. O Partido dos Trabalhadores
(PT) foi fundado nos anos 70 e já estava distanciado do marxismo e do
socialismo tradicional. Para assumir o poder, sua retórica havia mudado ainda
mais. E, claro, Lula havia mudado, Gil havia mudado, o entendimento do
Tropicalismo havia mudado (assim como a opinião sobre o uso das guitarras
elétricas na música brasileira).”.
As mudanças e discussões provocadas por
Gil encontrariam resistência dentro e fora do MinC, ao serem diretamente
questionados modelos e interesses políticos. Buscando ampliar o diálogo com a
sociedade, foram realizados diversos Fóruns e Seminários chamados de “Cultura
Para Todos”, repensando o papel da Cultura e do próprio Ministério no pais,
visando a elaboração de diretrizes para as políticas culturais. Augusto Boal, um dos precursores do teatro politico no pais, que
desde àquela época se mostrava hostil às propostas dos baianos, era um dos
principais criticos à escolha do nome de Gil para o Ministério, e ironizava: “Quando
perguntaram o que ele faria como Ministro, Gil respondeu que ainda não sabia.
Todo mundo tem planos, menos o ministro”.
Já para a professora Heloísa Buarque de Hollanda,“A
gestão de Gil mudou tudo, foi revolucionária no sentido de ter sido o primeiro
ministro a perguntar ‘o que é cultura?’, enquanto todos os outros já
acreditavam saber a resposta”.
Nos anos 60, Gil também se viu em
momentos de incerteza e resistência, onde era preciso arriscar, e este desafio
se repetiria quarenta anos depois a frente do Ministério da Cultura: “Não queremos estar
certos o tempo todo. Queremos estar certos e errados. Queremos ser completos.
Abram-se todas as garrafas, sim, para que os gênios possam sair”. E foi
neste ambiente de desafio que surgiram ações que talvez não tivessem tido
espaço em outros contextos. Gil não estava sozinho, e foi esta sinergia de
encontros e ideias que levaram a criação de dois importantes marcos em termos
de política cultural no Brasil: A Cultura Digital e os Pontos de Cultura.
A Cultura Digital – ou a Digitalização
da Cultura
A cada minuto é postado no Youtube 24
horas de conteúdo audiovisual por milhares de usuários de todo o planeta. Durante a Copa do Mundo de 2010 na África do Sul, o
mundo inteiro ficou sabendo com apenas 140 caracteres de uma campanha contra o
mais famoso locutor de futebol brasileiro, através de uma brincadeira promovida
por internautas brasileiros no twitter. No Brasil,
mais de 49% do acesso à internet hoje é realizado em lanhouses, muitas das
quais localizadas em áreas sem condições básicas de saneamento, educação, saúde
e segurança. Neste contexto, as políticas culturais
não podem ignorar a força não apenas da internet mas de diversas ferramentas
das novas tecnologias na formação, produção e circulação cultural. Já em 2003,
o Ministério da Cultura – e os diversos agentes a ele ligados – percebeu que
era preciso enxergar a chamada “Cultura Digital” como política pública, e
passou a investir (financeiramente mas, principalmente, ideologicamente) neste
debate.
O processo de “digitalização” da
cultura não diz respeito apenas à transposição de conteúdos para o meio
digital, mas sim como os elementos tecnológicos alteram relações sociais a
partir de uma nova configuração de conhecimento e de cultura. A chamada
“realidade virtual” é também real, pois ela existe, em suportes imateriais, abrindo
a possibilidade de novos usos a partir de novas regras. Assim, a própria noção
de “coletividade” se estabelece em outros espaços, uma vez que é possível
conectar em rede pessoas e ideias para além das limitações físicas do tempo e
do espaço. Para o jornalista Eugênio Bucci, “não é a tecnologia que muda a
sociedade. Nunca foi. A sociedade, ou os movimentos sociais ou as relações
sociais, é o que dão sentido social e histórico para a tecnologia, e não o
contrário”.
Na década de 70, Thimothy Leary já afirmara
no seu livro “A política do ecstasy” que “o computador é o
LSD do século XXI”. Com isso, ele acreditava que aquela
substância lisérgica proporcionava uma alteração no estado de consciência de
tal forma que possibilitava um outro entendimento do “real”, e, assim, uma nova
tomada de consciência do processo de existir. Quando surge o computador, ele
identifica que à medida que as novas tecnologias vão avançando, a quantidade de
informações que o cérebro humano passa a receber por dia também viria a
provocar uma percepção diferenciada do real, e assim, novas maneiras de
existir. E foi esta ideia que 30 anos depois possibilitou que a cultura digital
viesse a ser encarada enquanto política pública no Brasil.
Cláudio Prado, presidente do
Laboratório da Cultura Digital e amigo de Gil desde a época dos festivais de
rock em Londres, conta que eles roubavam e distribuíam livros de Leary para
“fazer a cabeça das pessoas”, dentro da lógica da época “turn in, turn on and
drop off”, que muito se aplica ao momento atual também. No
encontro de “Mídias Táticas” em 2003 em São Paulo, Prado conta que enxergou uma
ligação direta entre a citação de Leary e o momento que se encontravam, e assim
propôs para Gil, que havia acabado de assumir o ministério, que se pensasse o
digital enquanto uma questão cultural. A partir daí, teve início uma profunda
discussão em torno da cultura digital e qual seria o papel do Ministério neste
sentido, junto a jovens ativistas que já se articulavam em torno da questão do
software livre, metareciclagem e processos colaborativos. Um dos principais
fatores de execução – e experimentação – da política de cultura digital naquele
momento foi o “kit multimídia” nos Pontos de Cultura, equipamentos para fins de
registro, divulgação e comunicação em rede que deveriam ser adquiridos pelos
projetos selecionados. Em 2004 estava sendo discutido o projeto de Bases de
Apoio a Cultura (BAC), que previa a construção de equipamentos culturais nos
centros urbanos, e articuladores de todo o país foram convidados a integrar a
ação, a partir das experiências que já realizavam no que viria a ser chamado
“cultura digital”. Alguns meses depois o conceito inicial das BACs deu lugar ao
Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, e estes mesmos articuladores
atuaram na chamada Ação Cultura Digital, promovendo uma metodologia baseada no
aprendizado mútuo, compartilhamento e experimentação.
Gil explica que “atuar na cultura
digital é a concretização desta filosofia, que abre espaços para redefinir a
forma e o conteúdo das políticas culturais, e transforma o Ministério da
Cultura em Ministério da Liberdade, Ministério da Criatividade, Ministério da
Ousadia, Ministério da Contemporaneidade. Ministério, enfim, da Cultura digital
e das Indústrias Criativas … Cultura Digital é um novo conceito. Parte da ideia
de que a revolução da tecnologia digital é cultural em sua essência. O que está
em questão aqui é que o uso da tecnologia digital muda comportamentos. O uso
comum da internet e do software livre cria possibilidades fantásticas para
democratizar o acesso à informação e ao conhecimento, para maximizar o potencial
dos produtos e serviços culturais, para ampliar os valores que formam nossos
textos comuns, e portanto, nossa cultura, e também para potencializar a
produção cultural, gerando novas formas de arte”.
A Cultura Digital pode ser compreendida
em duas dimensões: uma prática, ou seja, a busca de alternativas à lógica de
mercado para os processos tecnológicos, a exemplo do software livre e do código
aberto como uma nova forma de produção e compartilhamento de informações; e uma
conceitual, onde se entende o digital como um processo cultural e, enquanto
tal, feito por pessoas que pensam seu lugar no mundo a partir da relação com a
tecnologia e entre si. Assim, a Cultura Digital retoma a filosofia hippie no
sentido de questionar a própria existência em relação à ordem econômica, às
relações sociais e ao avanço tecnológico: “A contracultura propõe re-olhar
pro mundo e reavaliar os valores políticos: a cultura da paz, a cultura do
feminino, a discussão política da liberdade levada às ultimas profundas e
verdadeiras consequências”.
Sob o signo da liberdade (social,
sexual, política), a cultura hippie buscava pensar o acesso às ferramentas
contestando a imposição do mercado, através do compartilhamento e da troca
dentro daquele contexto. Assim, buscavam na vida em comunidade uma alternativa
ao sistema capitalista que se consolidava. O próprio computador, que faz hoje
parte da vida de milhares de usuários em todo planeta, foi trazido do plano
industrial militar para o uso pessoal por jovens californianos que se
encontravam à margem do sistema, e que viram nesta tecnologia um instrumento
revolucionário de transformação social e cultural. Para Gilberto Gil, “aconteceu uma espécie
de migração contracultural das viagens de LSD para os laboratórios de alta
tecnologia e para o sonho da realidade virtual. A Califórnia era, naquele
momento, um centro da viagem contracultural e um centro de alta pesquisa
tecnológica”. No plano artístico, a discussão dos movimentos
contraculturais ia bastante no sentido de romper com a tradicional relação
entre o sujeito (o expectador) e o objeto (a obra de arte), propondo a fusão de
ambos: “A formulação certa seria a de se perguntar: quais as proposições,
promoções e medidas a que se devem recorrer para criar uma condição ampla de
participação popular”. Neste sentido, o software livre é uma
alternativa, dentro do contexto atual, para a relação entre o programador e o
usuário, que passa a interagir com o sistema operacional criando novas
experimentações. Para Cláudio Prado, “o digital, de certa forma, é o estado
alterado da consciência do consumo, porque é subversivo à lógica do capitalismo
por eliminar, em tese – e em alguns casos na prática -, o intermediário que não
agrega valor: a editora, no caso dos livros, a gravadora, no caso da música”.
Se na década de 60 o papel das editoras
e gravadoras foram fundamentais para o desenvolvimento da indústria cultural e
consolidação da classe artística no mercado, hoje em dia, frente as
possibilidades das novas tecnologias de criação e circulação cultural, o papel
deste mediador da produção ou distribuição começa a ser revisto. Segundo
Gilberto Gil, “o ambiente digital, o ambiente jovem, o ambiente da pluralidade do campo
da invenção, o crescimento do protagonismo popular e o desenvolvimento do papel
dos setores populares nessa sociedade humana crescente, tudo isso aponta pra
uma revisão do que tenham sido os marcos regulatórios ate então, daqui pra
frente é preciso rever, porque muita coisa que serviu ate aqui passa a não
servir tanto mais daqui em diante”.Enquanto
empresas ligadas à comunicação e à cultura se esforçam em criar dispositivos
para manter seu monopólio de mercado, novos agentes culturais se organizam em
torno do que se convencionou chamar de “novos modelos de negócio” e buscam
soluções criativas para a criação e difusão dos mais diversos produtos
culturais. A produção colaborativa e a comunicação comunitária vem ganhando
espaço nos últimos anos e, junto a isso, vemos hoje no Brasil uma política de
descentralização de recursos culturais, que enxerga na sabedoria popular e na
cultura local uma potencialidade social e artística a ser fomentada pelas
politicas públicas: eis que se descobrem os Pontos de Cultura..
Pontos de Cultura: o Brasil de baixo
pra cima
O Programa Cultura Viva foi criado em
2004 pelo Ministério da Cultura, a partir da reformulação do projeto inicial de
implementação de centros culturais chamados “Bases de Apoio à Cultura” (BACs).
Para o historiador Célio Turino, então Secretario de Programas e Projetos
Culturais (hoje Secretaria de Cidadania Cultural), “não havia conceito,
apenas um projeto arquitetônico de centros culturais pré-moldados. Estruturas
ocas a serem oferecidas para a comunidade tomar conta. Prédios iguais em um
país tão diverso? Quem pagaria a conta de luz? E a programação? Tudo com
serviço voluntário? Não daria certo. Fora a sigla, BAC. As palavras têm força,
baque é queda, susto”. Assim, depois de muito dialogo com diversos agentes
culturais, é apresentada a proposta do Programa Cultura Viva e seu carro chefe,
os Pontos de Cultura.
Segundo a descrição do Programa, sua
missão é “desesconder o Brasil, reconhecer e reverenciar a cultura
viva de seu povo”. Assim, trazendo a palavra “Viva” no nome, o programa entende
cultura enquanto processo, não apenasevento, e reconhece que esta deve vir de quem a faz – as pessoas – e não
pré-definida pela politica publica.Segundo Juca Ferreira, então Secretario
Executivo do Ministério e atual Ministro da Cultura: “O Ponto de
Cultura vai mais adiante porque a gente passou a reconhecer que o povo faz
cultura, apesar do Estado. No Brasil, são mais de 200 mil grupos culturais
existentes nas comunidades – ora organizados por ONGs, ora por pastorais, ora
por terreiros de candomblé, por centros espíritas. Ou a própria comunidade
organizou, ou algum artista orgânico, não importa a origem. São 200 mil com
motivações as mais diferentes. Grupos organizados em torno da capoeira, do
teatro… Então, nós reconhecemos esse fazer cultural da população como uma base
importante. E cabia apoiar, fomentar, ampliar, e não cooptar”.
O programa contempla iniciativas de
instituições da sociedade civil sem fins lucrativos, legalmente constituídas,
que há pelo menos dois anos envolvam a comunidade em atividades de arte,
cultura, cidadania e economia solidária. A partir de edital público são
selecionados projetos que passarão a receber recursos do Governo Federal para
potencializarem e darem continuidade a seus trabalhos culturais. Segundo as diretrizes
do edital, a iniciativa deve:“articular a produção cultural local
promovendo o intercâmbio entre linguagens artísticas e expressões simbólicas,
além de gerar renda e difundir a cultura digital, apoiar o desenvolvimento de
uma rede horizontal de articulação, recepção e disseminação de iniciativas e
vontades criadoras”. Para o teatrólogo Augusto Boal, “os Pontos de Cultura
são o começo da realização de um desejo manifestado pela classe artística”, que indicam “a força do
povo brasileiro na criação de uma nova cultura planetária”. Nesta
direção de preservação do patrimônio artístico e social, o projeto busca
priorizar também ações de registro das atividades e tradições
culturais, como afirma Célio Turino: Reforçar a identidade
cultural também significa revelar contradições e romper com uma identidade
cultural aparentemente homogênea, construída com base em determinados marcos
representativos da cultura dominante. (…) O registro literário, sonoro e visual
da produção artística de nossa época é uma meta a não se descuidar”.
Assim, parte do incentivo recebido na
primeira parcela, no valor mínimo de R$20 mil, deve ser utilizado para
aquisição do chamado “Kit Digital”, equipamentos multimídia em software livre
para fins de registro, divulgação e comunicação em rede entre os Pontos, além
da complementação de atividades culturais/digitais relacionadas ao trabalho
desenvolvido. Segundo Gilberto Gil, esta apropriação das ferramentas é
importante para “a própria garantia do progresso técnico e cientifico de forma conveniente
e necessária, o que requer que o protagonismo saia das mãos do laboratórios e
caia nas mãos do vulgo, do geral, das pessoas”.
O Ponto de Cultura não tem um modelo
único e fixo, seu principal aspecto em comum é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e a comunidade. As principais diretrizes desta
ação são oempoderamento (a permissão para o livre
gerenciamento de atividades), a autonomia (a capacidade de governar-se pelos próprios meios) e o protagonismo (a assimilação da diversidade em busca de um objetivo em comum).
Assim, esta proposta de politica publica vai no sentido de reconhecer ações que já sejam desenvolvidas nas diferentes comunidades
culturais, com contextos específicos. A “cultura viva” seria, assim, as
manifestações culturais que vão desde a contação de histórias em literatura de
cordel disponíveis na internet a oficinas de audiovisual em comunidades tradicionais com
equipamentos digitais; de rodas de jongo de uma comunidade quilombola rural registradas
em vídeo por estudantes universitários a exibições de filmes nacionais em espaços públicos não comuns. Gilberto Gil explica que “o que une todos
os povos em torno da diversidade é a diferença. Lutar para igualdade toda a vez
que a diferença nos oprime e lutar pela diferença quando toda a igualdade nos
homogeneíza. Eu acho que esse é a identidade comum, que une todos esses povos,
toda essa gente. Essa é uma questão politica também, a democracia é isso”.
A principal dificuldade encontrada
pelos Pontos de Cultura muitas vezes é a burocracia estatal, o que para o
pesquisador de politicas culturais Albino Rubim é resultado do “imenso fosso entre o estado nacional
realmente existente e as necessidades, interesses e demandas dos dominados.
Eles têm sido sistematicamente excluídos de uma relação democrática e
republicana com o Estado, construído por muitos, mas configurados para poucos”. Para Claudia de Souza Leitão, “o mais dramático na
ausência de acesso aos bens e serviços culturais é que esta exclusão não é
somente de natureza material, mas produz outras marginalidades imensuráveis,
afastando do homem sua capacidade de imaginar, criar, conhecer, partilhar,
experimentar, inovar e pertencer”.
O principal resultado da aposta no
Programa Cultura Viva e nos Pontos de Cultura foi o reconhecimento da
importância de formas organizacionais populares como tecnologia social a ser
apreendida e também replicada como politica publica, inserindo na cadeia
produtiva da cultura agentes que historicamente eram excluídos deste acesso.
Gilberto Gil, dois anos após abrir mão do cargo de Ministro da Cultura, avalia
que este Ministério “teve um papel muito importante em politizar estas questões, uma atitude
geral que juntou vontades governamentais com anseios sociais e ativismos
variados, trazendo os agentes construtores dessa nova realidade para
sentarem-se a mesa e discutirem”. Para Claudio Prado, a gestão de Gil no
MinC proporcionou uma abertura política para iniciativas como os Pontos de
Cultura e ações como a Cultura Digital, sobre a qual não havia muita
formulação, e facilitou também a interação entre sociedade e governo: “O pensamento dos anos
60 trazido para dentro do governo é muito mais revolucionário do que os
ex-exilados que também estavam dentro dos governos, embora eu não tenha nada
contra os exilados políticos da esquerda. Apenas eles acabaram resultando numa
acomodação política do século XX, enquanto eu acho que o movimento hippie
instalado procurou furar tudo isso, caminhando para o XXI”.
“O sonho não acabou, acordou”
Dentro desta perspectiva histórica,
podemos compreender melhor o atual desenvolvimento da politica cultural
brasileira no sentido da Cultura Digital. A geração da década de 60/70 se
engajou em movimentos políticos e culturais que, por um lado, estão limitados a
um tempo e espaço específicos, e, por outro levaram a rupturas e desdobramentos
que possuem relação direta com a geração jovem de hoje. Para Gilberto Gil, “sem saudosismo, não há motivo pra
saudade porque o que era vivo se deslocou no movimento do tempo e do espaço e
continua vivo, por sobrevivência, pela nova geração”. A resistência contracultural contra o governo ditatorial,
por exemplo, deu espaço hoje a movimentos alternativos que possuem uma outra
percepção do papel do Estado – mesmo que não haja um consenso geral sobre isso,
como também não houve naquela época. No caso do Ministério da Cultura, a atuação de Gil possibilitou de alguma forma um maior dialogo –
ainda que com evidente limitações, em se tratando de uma estrutura
historicamente defasada -, resgatando a bandeira tropicalista de maior
participação do publico na obra, uma vez que procurou não apenas resolver os
problemas apresentados pela sociedade civil, mas buscar de forma conjunta
construir soluções e colocar novas perguntas, compreendendo o papel estratégico
da diversidade cultural no cenário nacional e internacional.
No processo de desenvolvimento social brasileiro,
a Cultura Digital atua como um elemento conector entre grupos sociais e
vontades construtivas que até então se encontravam dispersos, proporcionando
produções colaborativas e soluções criativas através das novas tecnologias. Esta articulação em rede é uma das
principais soluções para a sustentabilidade dos Pontos de Cultura: a partir da rede de intercâmbio estabelecida,
podemos ter por exemplo um filme produzido por jovens participantes de uma
oficina de vídeo da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, com atores do grupo de teatro
Nós do Morro, na favela do Vidigal na Zona Sul do
Rio, com trilha sonora dos jovens músicos do Programa Integração pela Música
(PIM), em Vassouras no interior do Estado, editado
nos estúdios do Pontão da ECO, da Escola de
Comunicação da UFRJ, e exibido no cineclube do Cinema Nosso, no centro da cidade – vale lembrar, todos Pontos de
Cultura.
Neste trajeto, observamos uma alteração
de ações que, se em 60 eram predominantemente políticas e de intervenção social
direta, hoje estão mais ligadas à produção de subjetividades, em que a
transformação se dá no plano individual e coletivo, através da própria ação
cultural – como já havia sugerido a Tropicália e os movimentos contraculturais
daquele momento. Ou seja, se em 60 a cultura começava a ser reconhecida como
lugar de afirmação de uma identidade nacional e a consolidação dos meios de
comunicação de massa no país atraíram políticas públicas para o setor; em 80 e
90, com as manifestações pela abertura do regime, os movimentos sociais se
fortaleceram e enxergaram a cultura como uma importante arena de disputa
social; em 90 e início dos anos 2000, vemos crescer vertiginosamente ações
culturais da sociedade civil através de Organizações Não Governamentais,
prezando pela autonomia frente ao poder público, que implementava uma politica
econômica neoliberal, compreendendo que “cultura é um bom negocio”; Hoje, uma das tendências que se pode observar em
termos de políticas culturais no Brasil se dão em parceria com a sociedade
civil e a iniciativa privada, que busca garantir a preservação e valorização
das tradições populares, conectada com as tendências globais e visando a
inserção dos agentes no mercado cultural.
Neste sentido, deixo falar por mim uma
das principais figuras da contracultura, o jornalista Luiz Carlos Maciel, para
encerrar este artigo com uma dica para a geração de hoje, talvez um pouco menos
utópica, mas não menos inconformada:“Lembrar as lições dos anos 60 não é,
em absoluto, como querem fazer crer, uma manifestação de saudosismo, nostalgia
ou qualquer forma de apego reacionário ao passado. Não é nada disso, seus
bobos. Basta verificar o que aconteceu nos anos 70, 80 e 90, ou seja, o
recrudescimento do processo de robotização global da sociedade, para admitir
que essas lições precisam ser resgatadas e que a luta pela liberdade tem que
recomeçar. A despeito do conformismo crescente dos últimos anos, nem tudo está
perdido. Sempre é possível tentar evitar o pior. Paz e amor”.
Este artigo encontra-se sob Licença
Creative Commons BY-SA 2.5
É permitido copiar, remixar e
distribuir seu conteudo, desde que seja atribuida sua autoria e disponibilizada
sob a mesma licença.
* Aline Carvalho é pesquisadora
de politicas culturais no Brasil e atualmente mestranda em “Industrias
Criativas” na Universidade Paris 8. alinecarvalho.cultura@gmail.com | www.tropicaline.wordpress.com
CARVALHO, Aline. Produção
de Cultura no Brasil: Da Tropicália aos Pontos de Cultura. Rio de Janeiro: Multifoco, 2009.
KEHL, Maria Rita. As duas
décadas de 70, pág 31. In: RISÉRIO, Antônio; FREIRE, Maria
C. M.; KEHL, Maria Rita et al. Anos 70: Trajetórias. São Paulo: Iluminuras; Itaú Cultural, 2005.
SANTIAGO, Silviano. O
cosmopolitismo do pobre – Critica literária e critica cultural, pag 206. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004
VIANNA, Hermano. Tropicália´s
politics. pag 132. In BASUALDO, Carlos (org.) Tropicália: a Revolution in
Brazilian Culture. São Paulo: Cosac Naify, 2005
https://twitter.com/#search?q=cala%20a%20boca%20galv%C3%A3o
http://www.youtube.com/watch?v=bdTadK9p14A
magna-na-universidade-de-sao-paulo-usp/
Discurso de
Gilberto Gil na abertura da Semana de Software Livre no Legislativo em agosto
de 2003. Disponível emhttp://www.softwarelivre.gov.br/artigos/DicursoGil/
In:. “Esquema Geral
da Nova Objetividade”, escrito por Hélio Oiticica e publicado originalmente no
catálogo da mostra Nova Objetividade Brasileira (Rio de Janeiro, MAM, 1967)
Entrevista para a
Terra Megazine em 14/11/07. Disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2068863-EI6578,00.html
“Uma gestão
cultural transformadora: Proposta para uma Política Pública de Cultura” – texto
de Célio Turino para o site do MinC (www.cultura. gov.br em 06/06/05)
A exemplo do Cordel
sobre a Teia 2008 feito por Pontos de Cultura do Ceará, Amazonas, Maranhão,
Pará, Piauí e Roraima, disponível em
http://blogs.cultura.gov.br/teia2008/files/2008/11/cordelteia2008_grio.pdf
Como o Ponto de
Cultura Navegar Amazônia do cineasta Jorge Bodansky, um
barco equipado de um estúdio itinerante que oferece oficinas de vídeo e outras
atividades para a comunidade ribeirinha do Rio Amazonas
(http://www.navegaramazonia.org.br/).
Como o Ponto de
Cultura do Quilombo São José em Valença, no interior do estado do Rio de
Janeiro, que se apresentou na Bienal de Arte em Novas Tecnologias organizada
pelo Ponto de Cultura do Circuito Universitário de Cultura e Arte – CUCA da UNE
(http://www.cucadaune.blogspot.com).
A exemplo do
projeto “Acenda uma Vela”, do Ponto de Cultura Ideário, em Maceió, que realiza
cineclubes em velas de barcos no litoral alagoano (http://www.ideario.org.br).
MINISTERIO DA
CULTURA. Seminário Internacional do Programa Cultura Viva – novos mapas
conceituais. Brasília, MINC? 2009.
Publicação do
Ministério da Cultura em 1995, sob o comando do cientista politico Francisco
Weffort, durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. MINISTÉRIO
DA CULTURA. Cultura é um bom negócio. Brasília, MINC, 1995