Por Cassia
Olival*
Existem
diversos registros da relação que os movimentos culturais tiveram com os
governos em exercício. A relação Estado e Cultura, ao mesmo tempo em que pode
remeter aos conceitos fomento, incentivo e garantia da livre-expressão, também
pode estar ligada a nomenclaturas como enquadramento, censura e instrumento de
manobra. Nos movimentos de colisão da Sociedade com o Estado-Nação, a cultura
seguiu sua trajetória extra cartesiana, pois nem todos os pontos pertencem a
coordenadas lineares (“o ponto é infinito enquanto for ilimitado”).
Se nos
anos 60 Glauber Rocha defendia o olhar para a cultura nacional genuína, livre
das influências internacionais, nos anos 70 ele se questionava porque seus
filmes eram muito mais apreciados no festival de Cannes do que em qualquer sala
de cinema brasileiro. Se Mário de Andrade era o expoente expressionista do
movimento modernista, acabou sendo também o fundador do SPHAN no auge do Estado Novo. Se na sua
formação o samba foi perseguido, hoje é manifestação da cultura nacional por
excelência. Se Roberto Carlos cantou na Jovem Guarda “Quero que tudo vá pro
inferno”, nas décadas seguintes, já como Rei, viria a cantar “Jesus Cristo”.
Na
correnteza dos fatos, a contracultura é considerada mãe de diversos outros
movimentos como o mangue beat e até mesmo o rock dos anos 80. Perseguido pelos
militares e questionado sobre um possível descomprometimento da sua música com
a cultura brasileira pelos partidos da esquerda progressista, Caetano Veloso
uma vez afirmou que “aqui na Bahia encontramos para comer tanto barracas de
acarajé quanto de hot dogs”.
Vale
lembrar que o tropicalismo é herança da derrota de 1968. “O ano que não
terminou” foi marcado por uma insatisfação coletiva mundial que resultou em uma
nova forma de pensar, uma revolução cultural. A Guerra do Vietnã, a morte
de Martin Luther King, do estudante Edson Luis, ligado à União Nacional
dos Estudantes, bem como a instituição do AI-5, foram resultados do
recrudescimento político. O mal estar global fez com que os jovens se voltassem
contra qualquer organização política. Cresciam as correntes anarquistas, os
cabelos e barbas por fazer. Sexo, drogas e rock n´roll estavam na desordem do
dia.
Esta
conjectura faz nascerem novas formas de se fazer política. Os movimentos de
base, organizados principalmente através de organizações não-governamentais,
tornam-se ilhas, micro-sociedades pensadas a partir das deficiências do
Estado. A democracia é pleiteada nas Diretas Já.
A
globalização surge dando visibilidade aos movimentos mundiais de unificação da
cultura e ao mesmo tempo aos movimentos locais, como forma de afirmação das
culturas particulares. A economia vai estar presente em tudo (ou pelo menos
quase tudo). Cria da política “Cultura é um bom negócio”, a Lei Rouanet vai
desenvolver a indústria cultural brasileira, sobretudo, no meio audiovisual.
É
importante ressaltar que a Lei Roaunet, assim como as Leis do ICMS, dão conta
dos projetos de médio e grande porte. O pequeno produtor, assim como o artista
instalado fora dos grandes centros não estão incluídos nesta política, que é
conduzida pelas demandas do marketing cultural. Desta (e de algumas outras)
lacuna(s) é que vai se elaborar o Programa Cultura Viva.
O Cultura
Viva é um programa do Ministério da Cultura que aglutina uma série de ações
(pontos de cultura, cultura digital, ação griô, etc). Essas ações não possuem
um modelo único de gestão. Trabalham com as mais variadas linguagens, tendo
como ponto em comum a articulação através de redes sociais. Outra
característica própria é que para serem contemplados, os projetos e grupos
devem ter um histórico de atividades. Assim, o Cultura Viva não determina novas
políticas e sim dá voz a propostas já existentes.
Os Pontos
de Cultura são, portanto, projetos que já existem e que, por isso, já possuem
seus modos de ação. O governo não é responsável por criar novas ações em cada
estado, cada cidade. Ele é responsável por promover o diálogo entre estes
grupos (grupos às vezes que dificilmente manteriam contato), envolvendo-os em
uma mesma tecitura. Diferente de outras políticas que pensam em criar novas
“matérias” isoladas, aqui utiliza-se os diferentes fluxos que já estão em
atividade.
O Programa desenvolve ações transversais
entre os Ministérios e atualmente também entre estados e municípios através dos
editais de pontos de cultura, extrapolando as bases do próprio MinC e dando
conta de atender a demanda de diversos grupos não contemplados pelas leis de
incentivo à cultura. Grupos estes que, apesar de serem muitos, estavam
escondidos em uma história extra-oficial.
Atualmente há mais de 3.000 Pontos de Cultura por
todo o território brasileiro. Entretanto, apesar deste modelo, o Ministério da
Cultura já considera toda instituição que esteja desenvolvendo seu projeto
sócio-cultural um ponto de cultura, independente de ter sido aprovado pelo
edital.
* Cassia Olival é Produtora Cultural e ex-integrante da coordenação nacional do Centro Universitário de Cultura e Arte da União Nacional dos Estudantes - CUCA da UNE