Humanização do parto e nascimento na região do Cariri


Por Kaanda Barros Ribeiro* 

A discussão sobre Humanização do Parto e Nascimento é ampla e complexa porque envolve diferentes pontos de vista. Tentarei aqui, de forma breve, expressar os aspectos mais importantes deste tema tão atual e polêmico no Brasil, especialmente na região do Cariri. Aqui, o tema torna-se debatido com ênfase a partir da realização da Marcha pela Humanização do Parto no Cariri, ocorrida no dia 25 de Agosto na cidade do Crato. A Marcha reuniu uma dúzia de mulheres e homens pessoalmente envolvidos com a causa, ou por sensibilização ao tema, ou por experiências humilhantes e frustrantes de partos vivenciados nos hospitais da região. A Marcha foi apenas o primeiro passo dentre uma série de eventos e projetos, que já estão em andamento, para mobilizar cada vez mais pessoas em torno de uma mudança de paradigma sobre os processos de gestação, parto e nascimento no Cariri.  

A realidade do parto e nascimento no Brasil e em nossa região hoje é preocupante. Toda a evolução tecnológica e o enfoque no parto como evento médico e, portanto, inserido dentro de um contexto hospitalar, provocou uma desconexão das mulheres, familiares e profissionais da essência do parto e nascimento como evento humano e espiritual, um rito de passagem para a mãe, o bebê e a família. Assim, o parto institucionalizado, limita-se a uma série de procedimentos de rotina aplicados de maneira indiscriminada a todas as pacientes, sem considerar a singularidade de cada caso, sem explicar a necessidade de cada intervenção, sem – na maioria das vezes - sequer pedir licença para realização de procedimentos invasivos como: o exame de toque, a raspagem dos pelos e a episiotomia (corte do períneo no período expulsivo do parto normal).

A assistência ao parto hoje tem um único objetivo: extrair um bebê relativamente saudável, não importa a que preço, ou seja, há uma banalização das emoções e do corpo da mãe e também da percepção e sensibilidade do bebê. O parto e nascimento são uma iniciação, para o bebê marca a passagem para sua existência física neste planeta e para os pais representa o nascimento de uma nova mulher e de um novo homem, com novos papéis, responsabilidades e rotinas. Neste momento tão delicado, a mulher está passando não apenas por uma abertura em nível físico e sim também num nível mais sutil, sua estrutura psicoemocional e espiritual também está passando por um tipo de abertura, assim entra numa outra sintonia, em outro estado de consciência, mais sensível e vulnerável. E é justamente neste momento fundamental da vida sexual e do crescimento pessoal da mulher, que e mesma é tratada (na maioria dos hospitais) apenas como um objeto através do qual vem um bebê, ela fica em último plano, perde a sua identidade e torna-se “mãezinha”. No sistema público – quase sempre - é afastada da sua família, tendo o direito legal ao acompanhante negado. Sem falar nos maus tratos verbais: “cale a boca”, “é melhor você não atrapalhar”, “na hora de fazer você não gritou e agora tá achando ruim” até físicos, como impedir a ingestão de alimentos, líquidos e a livre circulação. Tudo isso caracteriza o que se chama de violência obstétrica, pesquisas apontam que um quarto das mulheres brasileiras já sofreram este tipo de violência, acredita-se que o número seria muito maior se as mulheres tivessem consciência de que, por exemplo: ser recriminada por expressar suas emoções, ser manipulada para fazer um cesárea desnecessária, restrição do contato mãe-bebê, constitui um tipo de violência sutil, a violência psicoemocional.

O atual modelo de atenção ao parto, excessivamente medicalocêntrico e hospitalocêntrico está mostrando seus sinais de falência, através do que os percussores da Humanização no Brasil chamam de “paradoxo perinatal brasileiro”, ou seja, por um lado excesso de intervenções e taxas excessivamente elevadas de cesarianas e por outro uma elevada mortalidade materna e perinatal atrelada a uma crescente insatisfação e sofrimento das mulheres em relação as suas experiências de parto. Para a obstetra Melania Amorim “O resgate do parto como evento fisiológico e a construção de um novo paradigma de assistência centrado na mulher irá proporcionar certamente a solução para esse paradoxo”.

Concordo com Melania que é necessária uma mudança em torno da cultura do nascimento. Esta mudança implica na conscientização e empoderamento das mulheres, que estão tão desinformadas, descrentes de seu próprio poder, ignorantes quanto a fisiologia do parto, submetendo-se passivamente a tudo o que lhe dizem, e muitas vezes optando por uma cesariana sem indicação real movida pelo desconhecimento, medo da dor ou falta de apoio do médico e da família. A retomada do protagonismo feminino é fundamental para a mudança da realidade que estamos vivenciando hoje, e isto já está acontecendo, basta vermos a quantidade de mulheres que foram as ruas em todo o Brasil nas duas grandes Marchas que ocorram este ano: a do Parto Domiciliar e do Parto Humanizado; o crescente número de serviços voltados para a assistência e apoio as mulheres e famílias durante o ciclo gravídico puerperal, enfocando o acesso à informação e o suporte psicoemocional para que a mulher tenha o parto que pode e quer ter, participando de todo o processo de maneira consciente e ativa e o aumento de profissionais da saúde aderindo à causa e atuando de maneira humanizada, mesmo contra o sistema. 

Mas ainda há muito caminho a trilhar, não basta termos mulheres informadas e empoderadas que ao chegar nas instituições hospitalares são desrespeitadas por profissionais desumanizados, dessensibilizados com o que fazem, desatualizados sobre o que aponta a Medicina Baseada em Evidência, que já comprova várias destas “intervenções de rotina” como desnecessárias e prejudiciais e desinformados do que orientam os Manuais da Organização Mundial de Saúde e do Ministério da Saúde que indica uma assistência humanizada. Também não adianta termos mulheres conscientes e profissionais humanizados e atualizados se o ambiente hospitalar não oferece as condições necessárias para a realização de um parto humanizado, como: que a mulher tenha o direito de escolher como, com quem e onde parir respeitado, pelo cumprimento da Lei 11.108 de abril de 2005; que a mulher tenha preservado o direito ao acompanhante que ela desejar na sala de parto; que a mulher tenha o direito de se movimentar livremente para encontrar as posições mais apropriadas e confortáveis durante seu trabalho de parto e parto; que a mulher possa ter acesso a métodos naturais de alívio de dor durante o trabalho de parto e que o ambiente físico do hospital esteja adaptado para fornecer o maior conforto, privacidade e apoio a mulher.

Mesmo com tudo isso, se não houver uma mudança no Sistema Público de Saúde, concretizando programas que já existem como a Rede Cegonha que prevê a construção de Centros de Parto Humanizado nos Hospitais e também de Casas de Parto para gestantes de baixo risco, com acompanhamento de enfermeiras obstetras e Doulas, dentre várias outras ações de apoio à parturiente. É necessário também se espelhar em modelos obstétricos que têm um retorno positivo tanto na diminuição da morbi-mortalidade materna e neonatal como na satisfação das usuárias do sistema público de saúde, como o da Holanda, no qual 30% dos partos são domiciliares realizados por parteiras treinadas pelo Governo e remuneradas para tal. Reforçando que as evidências científicas mais recentes disponíveis corroboram a segurança e os efeitos benéficos do parto domiciliar planejado. A questão principal não seria a criação de novas leis, mas a efetivação das já existentes. Segundo a obstetriz Ana Cristina Duarte: “A discussão toda do parto domiciliar está relacionada com o reconhecimento dessa opção para as mulheres, e a liberdade de elas escolherem onde e como querem ter o seu bebê. Essa liberdade de escolha ainda não é reconhecida pela sociedade. Existe o direito, mas as mulheres e a sociedade não entendem isso”. De acordo com a Organização Mundial de Saúde o melhor lugar para a mãe ter seu bebê é aonde ela se sentir mais segura, para algumas é na sua casa, para outras é na Casa de Parto e para outras é no hospital e o SUS deve contemplar todas essas mulheres, o que hoje, não acontece.

 Outro aspecto importante a ser ressaltado é que o Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento não é contrário à cesariana, reconhecemos a sua importância e necessidade, a cesárea salva vidas, o problema é a sua utilização indiscriminada, sem indicação real, o que faz do o Brasil hoje o primeiro país em número de cesarianas, 52% dos partos, chegando a 80% no serviço público, enquanto que a Organização Mundial de Saúde recomenda no máximo 15%. Outro grande problema são as chamadas cesáreas eletivas, marcadas sem que a mulher tenha entrado em trabalho de parto, o que implica no risco de complicações no nascimento caso o bebê não esteja maduro o suficiente, tal atitude tem levado muitos recém-nascidos direto para a UTI neonatal por dificuldades respiratórias. A pergunta que eu faço é: qual a dificuldade que temos de esperar? Por que arriscamos a vida de nossos filhos desta maneira? Em nossa sociedade, rápido tornou-se sinônimo de melhor, o que não é verdade.

A Humanização do nascimento implica a não realização de procedimentos de rotina invasivos, o contato imediato pele a pele mãe-bebê, a amamentação da primeira 1 hora de vida, a manutenção de mãe e filhos juntos em alojamentos conjuntos. Tudo isso é de fundamental importância, pois implica no registro que o recém-nascido terá da sua chegada neste mundo. Como estamos recepcionando os nossos bebês? Em ambientes frios, com profissionais desumanizados, separando mães e filhos... Dessa forma, segundo a psicóloga Laura Uplinger “A primeira transição forte de vida já vem como o marco da violência”. Ao falar de gestação, parto e nascimento estamos falando de “fundações de vida”, pois a base, a raiz desta nova vida está sendo construído desde a vida intrauterina, incluindo o parto e nascimento como eventos que não representam um rompimento e sim uma continuidade, ou seja, o que foi vivido nestes eventos fica marcado no corpo e na alma destas crianças, influenciando sua saúde física, mental e espiritual.  De acordo com Laura Gutman: “O corpo fala. O corpo tem memória: aquilo que aquela mãe e aquele bebê atravessam juntos vai deixar marcas em ambos”. Um parto traumático não é necessariamente aquele que a mãe demora 08 horas num trabalho de parto sentindo fortes contrações uterinas, isso é logo esquecido quando se tem o filho nos braços, o sofrimento, por outro lado, consequência dessa assistência desumanizada, da violência obstétrica e da desconexão mãe-bebê durante o processo de nascimento deixa marcas, fica. As interferências, traumas e marcas emocionais destas vivências podem interferir na relação entre mãe e bebê, na amamentação, na relação do casal, da mulher com a família, com seu trabalho e em sua autoestima e autoimagem.

Nós estamos alterando um processo fisiológico complexo e integrado, e pagamos um peço alto por isso, pois não há como modificar o delicado equilíbrio do funcionamento organísmico natural sem colher as consequências. Pesquisas comprovam que a primeira hora pós nascimento é determinante na construção do vínculo mãe-bebê e consequentemente maneira com que as crianças com os outros. O obstetra Michel Odent afirma que “a capacidade de amar é em grande parte construída e organizada em torno dos processos de nascimento”. Então vamos cuidar deste momento tão especial para a família, que não precisa ser ruim ou violento, mas deve ser um evento cercado de amor e principalmente, respeito!




*Kaanda Barros Ribeiro - Psicóloga Clínica e Perinatal, coordenadora do Grupo de Apoio “A Qualidade de Vida Começa no Útero” e organizadora do Movimento pela Humanização do Parto no Cariri. E-mail: geovivakaanda@gmail.com

Proxima
« Anterior
Anterior
Proxima »
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário