Adriana
B. Botelho[1]
[...] um autêntico aborígene de pele
acobreada, cuja infância selvagem decorrera nas regiões longínquas e
misteriosas do Alto Amazonas. Simpaticamente nômade, gloriosamente primitivo,
divinamente analfabeto, o índio Francisco Silva era, sobretudo, um maravilhoso
artista a quem nada faltará, até então, a não ser uma ocasião favorável para
revelar plenamente seus dons extraordinários. E, como vamos ver, o destino me
escolheu como instrumento desta revelação. (CHABLOZ,
1993:149)
E o pesquisador e artista Gilberto Brito acrescenta;
“Como pintor, eu o acho formidável porque ele inventa. Ele brincava pintando,
ria, bebia cerveja, imitava bicho. Ele era um brincalhão, não levava nada a
sério. Ele era um andarilho. Ele era uma pessoa de mata que conhecia bicho. Ele
é filho de índio caboclo, tá na cara”. (BOTELHO, 2007:85)
De Caura, artista e esposa do marchand Henrique Bluhm,
diz: “E o Chabloz falava do Chico como um deus. Ele dizia: isso é uma coisa
estupenda, mas é um louco. Um grande artista! Basta dizer que o Chico da Silva
está registrado na maior revista de arte do mundo, a Cahier D’Art, da França, o
Chabloz trouxe e mostrou a gente, o maior pintor primitivo do mundo, o Chico da
Silva”. (BOTELHO, 2007:89)
Quando avistou os desenhos esboçados em carvão e giz
nas paredes das casas da Praia Formosa, Chabloz procurando conhecer a pessoa
que tinha realizado tais desenhos descreve sua impressão acerca dos desenhos
que o moveria em busca do autor, “O que me chamou a atenção e me seduziu logo
nesses desenhos elementares foi sua originalidade, seu estilo nitidamente
arcaico e seu admirável poder de evocação poética”. (CHABLOZ, 1993:149, 150)
s/ título,
1943
Chico da Silva
Nanquim e lápis de
cor sobre papel mongolfier
19 x 31,5 cm
Acervo Museu de
Arte Contemporânea
Centro Dragão do
Mar de Arte e Cultura
Em trechos de um artigo de Chabloz publicado em 1942,
na revista Clima n. 8, sob o título O Brasil e o problema pictural, observamos
suas colocações a respeito da arte.
Organizadas aqui de modo a compor um quadro teórico em que fundamenta
suas posições artísticas. Inicia assim, “Digamos desde logo que a criação
artística, e mais particularmente a produção do fenômeno pictural, é
extremamente difícil no Brasil, especialmente no Rio. Esta dificuldade se
explica por causas que eu creio poder classificar em três grupos: naturais,
psicológicas e históricas”. (CHABLOZ,
1942:22, 26)
Suas causas históricas, destacadas, estavam ligadas
ao percurso linear de desenvolvimento das artes e que para se fazerem
autênticas precisariam de uma fase, a primitiva, como exemplifica poder
observar nos primitivos italianos, primitivos franceses e alemães. Referindo-se
assim a uma trajetória européia. E continua; “Ocorre que na arte brasileira se
observava uma arte vítima de um produto de importação, direta ou indiretamente,
como advinda do barroco português, do neoclassicismo, academicismo, realismo,
impressionismo francês, surrealismo europeu e norte-americano e assim por
diante”. (CHABLOZ, 1942:22, 26)
Isso era o que nos impedia de tomarmos consciência de
nós mesmos. Para ele, isso gerava “uma cultura de estufa”, na qual se faziam
enxertos prematuros, “[...] estas incontáveis injeções cujo efeito imediato é
embriagador, porém enganoso, e que sabotam as elaborações autônomas profundas,
as sedimentações naturais que elas apenas poderiam assegurar a este país um
centro de gravidade autêntico e,
consequentemente uma fisionomia que pertença senão a ele”. (CHABLOZ, 1942:22, 26)
Portanto, em sua conclusão, se não houve uma pintura
brasileira autêntica, seria indispensável mudar a atitude de espírito
dominante, seria preciso se libertar do academicismo, e discorre:
[...] da arte
literária e anedótica de uma “fabricação” pictural e turística, vulgarmente
decorativa ou publicitária e correr atrás de um gênio profundo da terra
brasileira para chegar a uma pintura [...] que eu imagino, será uma pintura
sóbria, máscula, mais estática do que dinâmica; uma pintura arquitetônica,
densa, animada por um sopro profundo e largo; uma pintura arcaica. (CHABLOZ, 1942:23)
E é com este olhar, na busca de um devir de uma
“autêntica” pintura brasileira, que deveria ser densa, sóbria, estática,
segundo ele, as características necessárias ao arcaico, com uma visão cansada
desta ausência, que Jean-Pierre Chabloz chega ao nordeste brasileiro.
Mário Pedrosa, em suas reflexões sobre arte e
cultura, fala de um processo entre o regional e o universal. O intuito, aqui, é
destacar o contínuo interesse dessas reflexões na crítica de arte. Segundo ele,
analisando o exemplo da arquitetura norte-americana que foi influenciada pela
européia, mas, posteriormente, desenvolveu aspectos locais, aconteceriam etapas
de desenvolvimento que o ideal na arte seria expressar as necessidades mais
específicas de uma cultura local. Assim,
explica o regional:
Não
há de que se admirar, pois, segundo Mumford, “caracteres regionais” não podem
ser confundidos com “caracteres aborígenes”. É um erro identificar o regional
com o puramente “local, grosseiro e primitivo”, diz-nos aquele autor. E por
quê? Porque a “adaptação de uma cultura a um meio particular é um processo
longo e complicado, e um caráter regional em pleno florescimento é o último a
emergir”. (PEDROSA, 1975:50)
O regionalismo não seria
meramente uma questão de copiar formas usadas por antepassados, mas formas e
soluções adequadas às condições reais de um povo. Essas condições seriam
específicas de um ambiente cultural e para acontecer um percurso distinto
seriam necessárias várias gerações. Talvez possamos ver na crítica de Pedrosa
um paralelo dessas “necessidades locais”, ao que Chabloz indicava poder estar
expressas nas particularidades “autênticas do primitivo”. Com isso, a
possibilidade do desenvolvimento pleno de uma arte no sentido dos vínculos imagéticos
e simbólicos mais fortes com as necessidades locais.
As
formas regionais são as que mais de perto respondem às condições reais da vida
e que melhor conseguem fazer que um povo se sinta completamente em casa, dentro
do seu meio: elas não apenas utilizam o solo, mas refletem as condições
correntes de cultura na região. (PEDROSA,
1975:50)
Vimos que, para Chabloz, o Chico representaria essa
pintura autêntica, e por isso se constituiria num primitivo da arte brasileira,
essencial para o nosso desenvolvimento. Para Mário Pedrosa, o sentido de uma
arte que expressa anseios locais pode ser gerado inicialmente de uma influência
de modelos externos, mas para chegar a uma arte autêntica, o passo seguinte
seria o regionalismo, ou seja, a expressão a partir de características
particulares locais.
Referências bibliográficas
BOTELHO, Adriana B. Chabloz vê Chico, Chico vê Chabloz:
estudo do conceito de arte primitiva na obra pictórica de Chico da Silva. Rio
de Janeiro: UFRJ/EBA, 2007.
CHABLOZ, Jean
Pierre. Revelação do Ceará. Fortaleza: Secretária da Cultura e Desporto do
Estado do Ceará, 1993.
______. O
Brasil e o problema pictural. In: Clima, n. 8:22-26. Rio de Janeiro, 1942.
GALVÃO,
Roberto. Chico da Silva. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000.
PEDROSA,
Mário. Mundo homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975.
PERRY, Gill.
O primitivismo e o moderno. In:
PERRY, Gill; HARRISON, Charles; FRASCINA, Francis. Primitivismo,
cubismo, Abstração: começo do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 1998.
Pássaro
e Roni Peixe 1959
Chico da Silva
Guache sobre Cartão
77,0 x 112,0 cm
Guache sobre Cartão
77,0 x 112,0 cm
Acervo do Museu da Universidade Federal
do Ceará (MAUC)
Jean Pierre Chabloz Chico
da Silva
(Fotos: acervo do Museu da Universidade
Federal do Ceará – MAUC /
www.mauc.ufc.br )