O crítico-curador vê o artista: a arte primitiva de Chico da Silva



Adriana B. Botelho[1]

                A intenção desta escrita é pesquisar o encontro de um artista e crítico de arte Jean Pierre Chabloz com o artista Chico da Silva. Esse encontro aconteceu na década de 40 na cidade de Fortaleza. Como parte central temos um crítico no contexto artístico da arte moderna europeia tornando visível no circuito da arte o trabalho pictórico de Chico. Ao fundo das coisas, há uma especulação sentimental/existencial do que buscamos através dos encontros.
  Em uma tradição da história da arte ocidental, no Ceará encontram-se influências ou vestígios de todos os movimentos artísticos que se desenvolveram no país. Esse percurso abrange da pintura rupestre, o barroco, neoclássico aos movimentos modernos.
O diálogo que se fazia à época com as tradições artísticas européias era determinante para a aceitação das obras de arte. O artista e crítico franco-suíço Jean Pierre Chabloz, chegando ao Rio de Janeiro em 1940, percebe essa característica no país e escreve textos em que critica a ausência de uma arte mais separada dessa tradição. Busca, então, uma pintura com raízes locais, fala de um arcaísmo, uma forma mais original, fundamentadora de uma expressão artística mais própria de uma cultura distinta e local. Onde andariam essas raízes?
Chabloz desenvolveu atividades artísticas na cidade, ensinou violino no Conservatório Alberto Nepomuceno, foi conferencista e crítico de arte. Escreveu para o jornal O Estado, entre janeiro de 1944 e o final de 1945, no período de sua primeira passagem em Fortaleza. Seus artigos dominicais publicados na coluna intitulada Arte e Cultura informavam sobre pintura, música, mercado de arte e falavam também sobre comportamento dos habitantes locais em relação à arte. Em 1944, participa da SCAP (Sociedade Cearense de Artes Plásticas) junto a outros artistas, em 1943, conhece os desenhos de Chico da Silva na Praia Formosa e vê aí, naquele homem, o que procurava.

O olhar através da pintura: un indien re-invente la peinture...

                Em seu texto original escrito em francês, publicado como um capítulo no livro com título “Revelação do Ceará”, Jean Pierre Chabloz narra seu primeiro contato com Chico da Silva, seus desenhos e o que percebeu sobre sua obra. Esses depoimentos e escritos construíram uma identidade artística, vinculando uma possível origem indígena a certas características artísticas, uma delas, foi o conceito de primitivo.
Nesse texto, ele previamente, chama a atenção para o nome de Francisco Silva, nome que se distingue por ser muito comum e por ser “uma etiqueta acidental” para:

 [...] um autêntico aborígene de pele acobreada, cuja infância selvagem decorrera nas regiões longínquas e misteriosas do Alto Amazonas. Simpaticamente nômade, gloriosamente primitivo, divinamente analfabeto, o índio Francisco Silva era, sobretudo, um maravilhoso artista a quem nada faltará, até então, a não ser uma ocasião favorável para revelar plenamente seus dons extraordinários. E, como vamos ver, o destino me escolheu como instrumento desta revelação. (CHABLOZ, 1993:149)         

Um autêntico aborígene, nômade e primitivo vindo do Alto Amazonas, são as características descritas. No trabalho de campo, entrevistamos os artistas que trabalharam e conviveram intimamente com Chico. 
Questionados sobre a possível origem, seus contemporâneos afirmaram nada poder comprovar, mas descrevem atitudes fazendo uma relação, em geral, afirmam que Chico era índio pelos costumes. Pois tinha como hábito frequente andar de dorso nu e o espírito coletivo, acolhendo a todos que chegassem. Para eles, o que mais afirmava essa origem era viver com sua provisão diária, não importando se depois não tivesse dinheiro: gastava tudo no mesmo dia. Tinha características físicas indígenas. Em casa comia em bacias e sentava no chão ao comer. E no dia a dia era homem de histórias inventivas e fabulosas, era extrovertido e falava com todos, sem distinções. São vozes recorrentes numa maneira de percebê-lo. Indaguei, para perceber a relação dessas características pessoais com sua pintura. Baba, artista que conviveu pintando com Chico, diz:

Ele pintava uns pássaros, uns peixes, umas coisas muito exóticas. Muito louca, assim, muito dele mesmo, primitivo que ele era. Ele era um primitivo mesmo, não era somente um pintor primitivo ele era uma pessoa primitiva. Eu comparo com os primeiros homens a desenhar com os homens das cavernas. Chico era um homem sem maldade, sem ganância, sem ambição. Uma coisa que era dele, ele queria que fosse de outras pessoas também. (BOTELHO, 2007:78)

E o pesquisador e artista Gilberto Brito acrescenta; “Como pintor, eu o acho formidável porque ele inventa. Ele brincava pintando, ria, bebia cerveja, imitava bicho. Ele era um brincalhão, não levava nada a sério. Ele era um andarilho. Ele era uma pessoa de mata que conhecia bicho. Ele é filho de índio caboclo, tá na cara”. (BOTELHO, 2007:85)
De Caura, artista e esposa do marchand Henrique Bluhm, diz: “E o Chabloz falava do Chico como um deus. Ele dizia: isso é uma coisa estupenda, mas é um louco. Um grande artista! Basta dizer que o Chico da Silva está registrado na maior revista de arte do mundo, a Cahier D’Art, da França, o Chabloz trouxe e mostrou a gente, o maior pintor primitivo do mundo, o Chico da Silva”. (BOTELHO, 2007:89)
Quando avistou os desenhos esboçados em carvão e giz nas paredes das casas da Praia Formosa, Chabloz procurando conhecer a pessoa que tinha realizado tais desenhos descreve sua impressão acerca dos desenhos que o moveria em busca do autor, “O que me chamou a atenção e me seduziu logo nesses desenhos elementares foi sua originalidade, seu estilo nitidamente arcaico e seu admirável poder de evocação poética”. (CHABLOZ, 1993:149, 150)
                Chabloz o encontra e encomenda-lhe três desenhos, pagando antecipadamente. Entrega-lhe papel, tintas, lápis, pincéis, e posteriormente analisa-os; “Havia ali duas grandes composições executadas em pastel e uma menor feita a nanquim e lápis de cores. Devo dizer que as duas primeiras me decepcionaram um pouco: eram “tímidas” e mesmo malfeitas, com um caráter mais pueril do que primitivo” (CHABLOZ, 1993:151). Tem uma que o encanta e faz com que ele decida continuar próximo ao Chico, estimulando-o.

Mas felizmente havia a terceira tentativa, de formato menor, mas de qualidade nitidamente superior. Tão superior mesmo que, imediatamente, me fez voltarem todas as esperanças. O assunto escolhido por Silva era dos mais simples: um pássaro-fêmea e quatro filhotes. Mas a composição (os filhotes, apresentados de perfil, dispostos como raios em torno da mãe), a expressão selvagem dos olhos, a sobriedade do colorido, o efeito altamente decorativo do conjunto, tudo contribuía para fazer dessa criação espontânea uma pequena obra-prima de arte primitiva que se tornou o ponto de partida de uma maravilhosa coleção de “Silvas” [...]. (CHABLOZ, 1993:151)


s/ título, 1943
Chico da Silva
Nanquim e lápis de cor sobre papel mongolfier
19 x 31,5 cm
Acervo Museu de Arte Contemporânea
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura

Chabloz mostra as pinturas por onde anda, Fortaleza, Rio de Janeiro, Genebra, Lausanne, Lisboa, e comenta a repercussão, algumas desfavoráveis que geravam reprovações do tipo: “meu filho faria iguaizinhas”. No entanto, é na aprovação e no sentido de quem vê o que viu que ele comenta que esses os que vêem, “[...] possuem esses olhos diretamente ligados ao coração, e através dele, têm livre acesso ao reino encantado do Sonho e da Poesia. Os bem-aventurados que souberam ver no maravilhoso universo de Francisco Silva, o índio, o que eu próprio tinha visto”. (CHABLOZ, 1993:154)
Foi nesse contexto que se deu tal contato permanente entre os dois. Chabloz encontrara uma arte mais distinta da das correntes européias e Chico encontra um apreciador fiel de seu pictórico imaginário fabuloso. Delineou-se aqui um encontro e, no seu transcorrer, formador de várias nuances.

O problema pictural do Brasil

Em trechos de um artigo de Chabloz publicado em 1942, na revista Clima n. 8, sob o título O Brasil e o problema pictural, observamos suas colocações a respeito da arte.  Organizadas aqui de modo a compor um quadro teórico em que fundamenta suas posições artísticas. Inicia assim, “Digamos desde logo que a criação artística, e mais particularmente a produção do fenômeno pictural, é extremamente difícil no Brasil, especialmente no Rio. Esta dificuldade se explica por causas que eu creio poder classificar em três grupos: naturais, psicológicas e históricas”. (CHABLOZ, 1942:22, 26)
Suas causas históricas, destacadas, estavam ligadas ao percurso linear de desenvolvimento das artes e que para se fazerem autênticas precisariam de uma fase, a primitiva, como exemplifica poder observar nos primitivos italianos, primitivos franceses e alemães. Referindo-se assim a uma trajetória européia. E continua; “Ocorre que na arte brasileira se observava uma arte vítima de um produto de importação, direta ou indiretamente, como advinda do barroco português, do neoclassicismo, academicismo, realismo, impressionismo francês, surrealismo europeu e norte-americano e assim por diante”. (CHABLOZ, 1942:22, 26)
Isso era o que nos impedia de tomarmos consciência de nós mesmos. Para ele, isso gerava “uma cultura de estufa”, na qual se faziam enxertos prematuros, “[...] estas incontáveis injeções cujo efeito imediato é embriagador, porém enganoso, e que sabotam as elaborações autônomas profundas, as sedimentações naturais que elas apenas poderiam assegurar a este país um centro de gravidade autêntico e, consequentemente uma fisionomia que pertença senão a ele”. (CHABLOZ, 1942:22, 26)
Portanto, em sua conclusão, se não houve uma pintura brasileira autêntica, seria indispensável mudar a atitude de espírito dominante, seria preciso se libertar do academicismo, e discorre:

[...] da arte literária e anedótica de uma “fabricação” pictural e turística, vulgarmente decorativa ou publicitária e correr atrás de um gênio profundo da terra brasileira para chegar a uma pintura [...] que eu imagino, será uma pintura sóbria, máscula, mais estática do que dinâmica; uma pintura arquitetônica, densa, animada por um sopro profundo e largo; uma pintura arcaica. (CHABLOZ, 1942:23)

E é com este olhar, na busca de um devir de uma “autêntica” pintura brasileira, que deveria ser densa, sóbria, estática, segundo ele, as características necessárias ao arcaico, com uma visão cansada desta ausência, que Jean-Pierre Chabloz chega ao nordeste brasileiro.
Mário Pedrosa, em suas reflexões sobre arte e cultura, fala de um processo entre o regional e o universal. O intuito, aqui, é destacar o contínuo interesse dessas reflexões na crítica de arte. Segundo ele, analisando o exemplo da arquitetura norte-americana que foi influenciada pela européia, mas, posteriormente, desenvolveu aspectos locais, aconteceriam etapas de desenvolvimento que o ideal na arte seria expressar as necessidades mais específicas de uma cultura local.  Assim, explica o regional:

Não há de que se admirar, pois, segundo Mumford, “caracteres regionais” não podem ser confundidos com “caracteres aborígenes”. É um erro identificar o regional com o puramente “local, grosseiro e primitivo”, diz-nos aquele autor. E por quê? Porque a “adaptação de uma cultura a um meio particular é um processo longo e complicado, e um caráter regional em pleno florescimento é o último a emergir”.  (PEDROSA, 1975:50)

O regionalismo não seria meramente uma questão de copiar formas usadas por antepassados, mas formas e soluções adequadas às condições reais de um povo. Essas condições seriam específicas de um ambiente cultural e para acontecer um percurso distinto seriam necessárias várias gerações. Talvez possamos ver na crítica de Pedrosa um paralelo dessas “necessidades locais”, ao que Chabloz indicava poder estar expressas nas particularidades “autênticas do primitivo”. Com isso, a possibilidade do desenvolvimento pleno de uma arte no sentido dos vínculos imagéticos e simbólicos mais fortes com as necessidades locais.

As formas regionais são as que mais de perto respondem às condições reais da vida e que melhor conseguem fazer que um povo se sinta completamente em casa, dentro do seu meio: elas não apenas utilizam o solo, mas refletem as condições correntes de cultura na região. (PEDROSA, 1975:50)

Vimos que, para Chabloz, o Chico representaria essa pintura autêntica, e por isso se constituiria num primitivo da arte brasileira, essencial para o nosso desenvolvimento. Para Mário Pedrosa, o sentido de uma arte que expressa anseios locais pode ser gerado inicialmente de uma influência de modelos externos, mas para chegar a uma arte autêntica, o passo seguinte seria o regionalismo, ou seja, a expressão a partir de características particulares locais.


Referências bibliográficas

BOTELHO, Adriana B. Chabloz vê Chico, Chico vê Chabloz: estudo do conceito de arte primitiva na obra pictórica de Chico da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2007.

CHABLOZ, Jean Pierre. Revelação do Ceará. Fortaleza: Secretária da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 1993.
______. O Brasil e o problema pictural. In: Clima, n. 8:22-26. Rio de Janeiro, 1942.

GALVÃO, Roberto. Chico da Silva. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000.

PEDROSA, Mário. Mundo homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975.

PERRY, Gill. O primitivismo e o moderno. In: PERRY, Gill; HARRISON, Charles; FRASCINA, Francis. Primitivismo, cubismo, Abstração: começo do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 1998.


Pássaro e Roni Peixe 1959
Chico da Silva
Guache sobre Cartão
77,0 x 112,0 cm
Acervo do Museu da Universidade Federal do Ceará (MAUC)
Jean Pierre Chabloz    Chico da Silva



(Fotos: acervo do Museu da Universidade Federal do Ceará – MAUC  / www.mauc.ufc.br )




[1] Mestre em artes visuais (EBA/UFRJ)

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