Texto de Rosemberg Cariry continua atual para compreensão da diversidade e do hibridismo cultural brasileiro

II CONFERÊNCIA DE CULTURA – ANOTAÇÕES DE UM “OBSERVADOR”
 
Exmo. Sr. Ministro da Cultura, Juca Ferreira,
 
Rosemberg Cariry  filósofo  e cineasta 
Agradeço o convite que me foi feito, na qualidade de “observador”, para participar do II Conferência Nacional de Cultura, ocorrida de 11 a 14 de março de 2010, nas instalações high tech do Centro de Convenções Brasil 21, em Brasília. Cumpro aqui minha função e dou conta de tudo quanto observei, fazendo uso dos cinco sentidos, da razão cartesiana, de um punhado de intuição e de muita boa vontade.

Não vou contar aqui dos atropelos iniciais, dos funcionários do Brasil 21, seguranças bem nutridos e bem jeitosas moças, todas vestidas de preto, como se tratasse de uma funerária. Tratava-se de uma festa mais alegre e cheia de diversidade, conforme nos coube observar.  

O que mais me chamou a atenção foram as cores, os suores, as texturas e os matizes de peles, a “muvuca” dos sons e os sabores escondidos em farnéis e bolsas. Vi um Brasil que nunca vira antes, de gente que habita todos os confins, do pantanal aos pampas, das florestas amazônicas às caatingas nordestinas, dos cerrados do planalto central aos litorais atlânticos, das serras aos chapadões, das dunas do Saara-Ceará aos manguezais do Maranhão. Vi um Brasil plural e multiétnico, feito de negras de perfis helênicos, de sararás de lábios grossos e narizes chatos, de índios-índios, de índios de olhos azuis, de índios indo-europeus, de brancas de cabelos negros como a asa da graúna e lábios doces como o mel da jati, de japonesinhas com cocares multicoloridos que mais pareciam índias, de cafuzos assumindo a nova condição cigana, de “afro-descendentes” quilombolas de cabelos pintados de louro, como os “afro-americanos” do Harlem, de morenos desabusados e mulatas de traiçoeiros olhos verdes. Tudo estava em trânsito. E o que era cantador de viola virou griô, e o que era mulato virou quilombola, e o que era caboclo virou índio, e o que era índio virou branco, e o que era “afro-descendente” virou loiro, e o que era loiro vestia-se como “afro-descendente” dos afoxés da Bahia e trazia no pescoço os cordões de patuás. E Deus salve todos nós!

Como se não bastasse essa mistura capaz de acabar de vez com o juízo de Deus, percebi um fluxo de migrações inter-étnicas e interculturais de tal forma que fui logo me identificando  com as propostas de algumas nações indígenas do Amazonas e do Nordeste. Liguei-me a um grupo de Pankaruru do Pernambuco e me anunciei como descendente dos Cariri. Minha avó Perpétua foi uma cabocla Cariús, descendente da guerreira nação. Fui aceito, comprei um cocar e realizei meu sonho de infância. Desde pequeno, lá na cidadezinha de Farias Brito-Ce, quando eu via os filmes de caubóis, sonhava em ser índio... Apache, se possível. Eu queria ser Apache, como Jerônimo. Aqui peço desculpas, é que eu ainda não conhecia a saga de Raoni, de Juruna, de Anhamun, de Sapé e de Macunaíma, heróis da nossa gente. Agora que conheço, quero mesmo é ser índio brasileiro. Neste encontro com muitas tribos, terminei sendo identificado como um Urubu-Caapor, pelas cores da penas do cocar que eu acabara de comprar, o que muito me orgulhou (também). O nosso líder, aquele que falava em nome dos índios tinha um perfil de imigrante ucraniano e falava Nheengatu, com pesado sotaque alemão. Insisto, o que vale no homem são as ideias e o caráter. O homem defendeu nossas bandeiras muito bem, e nós tocamos nossas flautas. Depois, fizemos soar as nossas caixas de guerra. Somos todos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, na Amazônia brasileira.

Outra coisa que achei interessante, senhor Ministro, foi o movimento do griôs brasileiros. Responsáveis pela transmissão das tradições orais das tribos na África do Norte, os griôs iam de aldeia em aldeia, contando e cantando as linhagens dos reis, guerras antepassadas e visões do futuro. No Brasil, as manifestações mais próximas dos griôs africanos seriam um mistura de contadores de história com os violeiros, os cantadores ambulantes e os cegos de feira do Nordeste brasileiro. Eu ouvi falar em griô, pela primeira vez, na Europa, reinventado pelo multiculturalismo francês. Lembro-me deste conceito estrangeiro, quando, novidadeiros, lançamos o projeto “Mestres e Guardiões dos Saberes Populares”, em 1996, no Crato-Ce, e realizamos o “Festival Internacional de Repentistas e Trovadores”, em 2002, no sertão central do Ceará. Na apresentação deste evento escrevi:
“Nos sertões do Nordeste brasileiro deu-se um encontro de mundos -nações, povos e culturas se enfrentaram,  misturaram-se e geraram a cal que alicerçou o que hoje poderíamos chamar de cultura nacional. Os sertões são herdeiros das principais vertentes culturais do Ocidente, notadamente das culturas ibéricas, magrebinas, mediterrâneas, africanas, afro-brasileiras e ameríndias. Nos sertões, através dos século em que foram construídos destinos e história, surgiram os gênios das raças, as antenas do inconsciente coletivo - os primeiros trovadores, cantadores e violeiros;  herdeiros dos bardos gregos, dos regueifeiros galegos, dos trovadores portugueses, dos poetas provençais, dos aboiadores árabes, dos griôs  africanos, dos improvisadores tapuias. O universo fascinante e mágico dos cantadores e repentistas fecundou todas as artes do Brasil, e não houve um só movimento musical, do baião à tropicália, da MPB à música erudita, do rock ao hip-hop, que não tenha bebido na inesgotável fonte da cantoria,da viola sertaneja, do pandeiro e do ganzá”.  

O que não sabíamos (naquela época) é que o conceito endógeno de griô, antropofagicamente digerido, se ampliaria tanto como uma espécie de guarda-chuva que tudo abriga: de recitadores de versos de feira a pai de santo, de mestre de cacumbi a tocadores de zambê, de condutores de mirações da Ayuasca a filha de santo dos terreiros de negros de Minas.  Testemunhei um “botador de bonecos” do interior do Ceará com sua nova carteirinha de griô, orgulhoso que tava danado de sua condição e pertencimento a um grupo identitário.  Em todo o evento, ninguém cantou mais canções do que os griôs, ninguém protestou mais do que os griôs, ninguém articulou mais do que os griôs, com suas reivindicações de leis específicas e possível adaptação da Constituição brasileira aos ideais griôs. Ave! Digo, Axé! Roupas de griôs, diretamente importadas do Quênia e do Mali, custavam cinquenta reais, mas tínhamos também as de trinta e vinte e cinco reais para os griôs mais pobres. Pensei em comprar uma de 15 reais, mais fraquinha, menos colorida, mas de maior possibilidade para as minhas poupanças de poeta cordelista e cineasta figural. Terminei comprando (fiquei liso) para presentear o meu amigo Oswald Barroso, teatrólogo, poeta, pesquisador da cultura popular e, de agora em diante, verdadeiro griô. Para ele, comprei também um turbante afro-muçulmano-brasileiro, baratinho, apenas oito reais. Cor de ouro, ficará bem com os seus cabelos brancos. Espero que ele faça, a partir de agora, em suas aulas espetáculos (ao modo de Ariano Suassuna), explicações tão convincentes como a que ouvi de um legítimo griô baiano, afro-descendente quase 100% puro, que explicou toda a linhagem dos griôs baianos desde o século XVI até a primeira década do século XXI, onde se encontra com a pós-modernidade e se reinventa nos blocos e nos trios elétricos da Bahia, com a bênção de Gilberto Gil. Fiquei convencido e comovido, gosto do visual dos griôs, embora goste também do visual afro-tarzan da Timbalada de Carlinhos Brown.

Deixando de lado a complexidade étnica brasileira, capaz de acabar de vez com o juízo de Deus, abri os meus ouvidos e entrei em transe com a multissinfonia de sons e de ritmos. A bem da verdade,  achei que o jovem e “bronzeado” carioca, que tentava improvisar ao som de um pandeiro, não se saiu muito bem e quase nunca conseguia rimar. Um dia, ele chega lá e vira Manezinho de Araújo ou um Jackson do Pandeiro, questão de tempo e de dedicação. Deus ajuda, e meu Padim Ciço dá um empurrãozinho, já que se trata de coisas do Nordeste. Seu Zé do Pife, brasiliense de São José do Egito, tocava um baião apimentado, e seus olhos se divertiam com os corpos bem desenhados de duas loiras cariocas (bem malhadas) que sambavam e se requebravam para alegria de negros (perdão, digo: “afro-descendentes”), brancos, mulatos, morenos, amarelos, mestiços e sararás. O reinado das cariocas foi logo derrotado por sete baianas que, requebrando as cadeiras, deixaram os mesmos “afro-descendentes”, brancos, mulatos, morenos, amarelos, mestiços e sararás, cheios de desejos inconfessáveis, em uma reunião de caráter eminentemente cultural como esta. Um desassossego que me levou à conclusão de que, nesses assuntos mais profundos, o que menos importa é a cor da pele. Se um atacava de berimbau, outro arranhava uma viola. Enquanto um chorava um amor perdido no realejo, outro arriscava uma curraleira ou mesmo um bolero de Waldick Soriano. Dois ou três paulistas, estudantes da USP, ensinavam Bossa Nova a três brincantes do guerreiro alagoano. O canto triste de um índio, acompanhado pelo maracá, tocou o coração de uma alemãzinha romântica, de Santa Catarina, que, deixando de lado todos os preconceitos, resolveu “ficar” com o jovem mancebo Xavante, que insistia em soprar a tristeza da canção na sua flauta de bambu. Se tudo isto tinha, muito mais coisas nós vimos: tambor de crioula, grupo de carimbó, banda cabaçal, roda de coco, fandango gaúcho, samba de cumbuca, roda de Nau Catarineta, caretas de Potengi, ponto de macumba e linha de caboclo de catimbó, entre centenas de outros costumes, ritmos, danças e modas de viola.  

A tudo vi. De tudo ouvi. Até mesmo um tango, senhor Ministro, durante a plenária. Casais de jovens brasilienses, vestidos em paletós de gangsteres portenhos e meninas fatais de vestidos longos, lascados na lateral, deram um aparente tom de tragédia ao que era festa e brincadeira. Fica bem dançar tango em Brasília, depois de tantos escândalos e republicanas tragédias. O mesmo tango serviu para que uns dançassem hip-hop, que outros atacassem de xaxado e dois ou três ensaiaram danças pouco definidas, mas que me pareceram uma mistura de rituais zulus com o rock da década de cinquenta. Já no último dia, enquanto se votavam as propostas prioritárias para comemorar vitórias, alguém entoou um aboio tão belo e profundo que é como se os oitocentos anos de dominação árabe na península ibérica se fizessem ali presentes pela voz deste vaqueiro nordestino, nomeado delegado da Associação dos Vaqueiros Nordestinos para as coisas da cultura e assuntos exteriores. A cada proposta aprovada, os gritos tribais reinventados na urbanidade tardia, as vozes profundas das almas ancestrais, entrecortadas com vaias, palmas, urras ecoavam no grande salão, e os sorrisos que se desprendiam da boca iam se arranchar nas almas, feito anjinhos barrocos.

Não pense que essas cores e essas raças, essas profusões de ritmos e esses sons não tinham cheiro. Pois tinham sim, de suores da floresta a securas dos sertões, de hálitos perfumados de morenas aos “bafos-de-onça” de quem fugira para tomar uma pinga (garrafa escondida na mochila ou mesmo para queimar um baseado, na intimidade do banheiro). Do meu lado, tinha uma cabocla do Pará, tão bela e tão perfumada com as essências da floresta, que eu fiquei para sempre com este perfume na alma e com as promessas dos seus olhos se balançando na rede na varanda dos meus olhos. Pensei logo em Iracema, a virgem dos lábios de mel e confesso, senhor Ministro, que fui politicamente incorreto e pensei um monte de safadezas. Que Deus, me perdoe, pagarei todos os pecados, não por obras, mas por imaginação. Na próxima romaria que farei para o Juazeiro do Norte, em cima de um caminhão Pau-de-arara, com promessas a serem pagas a meu Santo Padim Ciço, que tudo vê. Santo bom, porque do povo, que as fraquezas dos homens compreende e perdoa.
No almoço, tinha aquelas comidas esquisitas, feitas de venenos e isopor, com um copo de coca-cola ou de uma tinta amarela que dizia ser laranja. Isto não é motivo para pensar que o povo brasileiro não resiste. O povo resiste, sim. Sempre aparecia, como por milagre, tirado de dentro de alforjes, mochilas e malas, um pedaço de rapadura com um punhado de farinha, um guisado de carne do sol com cebola e macaxeira, um doce de casca de laranja da terra, pão de mucunã com geléia de pimenta, um tijolo de buriti, um suco de cupuaçu dentro de garrafas de plástico e a embriaguez do cauim, encantada dentro de uma cabeça, que ainda guardava o doce aroma do mel.   

Ao final, foram aprovadas 32 propostas prioritárias, 132 propostas secundárias, 368 propostas essenciais e 175 propostas importantes. Houve algum ruído, logo superado, pois a festa democrática tudo redime. Explico melhor o que houve: ao ser lido o documento final, com a vossa presença, senhor Ministro, os descendentes indígenas vislumbraram o anúncio da Terra Sem Mal, os caboclos nordestinos o Reino do Juremá, o seguidores das religiões orientais o Nirvana, os católicos e os muçulmanos o Paraíso e os yahuasqueiros as Mirações do Bem-Virá. Não importa essa aparente multiplicidade de visões, tudo isto no conduz ao País de São Saruê, versão cabocla do país de Cocanha, onde no leito dos rios corre leite e cujas beiradas são de cuscuz de milho verde, salpicado com coco ralado e pedacinhos de queijo, onde o dinheiro se colhe nas árvores, menino já nasce aprendido  no ler, contar e medir, em tudo sabido demais. E o sertão vai virar mar.

Um antropólogo francês naturalizado brasileiro gritava: “vamos preservar os tesouros vivos da cultura popular como quem preserva uma relíquia em um sacrário, defendo-a das influências estrangeiras”. Com a fala daquele homem, pensei logo numa santa cruzada, numa espécie de guerra santa, no Al Qaeda e na luta contra o terrorismo que o presidente Obama, prêmio Nobel da Paz, continua alimentando, contra todas as expectativas do mundo.  Mas não, o tal antropólogo francês ou francês naturalizado não falava deste tipo de guerra contra o terrorismo, conclamava o povo a preservar sua cultura - o que todos os dias se transforma, o que, por natureza, está sempre em trânsito, o que nunca tem fim porque nunca foi concluído. Missão impossível. Lembrei de Paulo Emílio Salles Gomes, quando afirmou “Não somos nem europeus, nem americanos do norte, mas privados de cultura original, nada para nós é estrangeiro, pois tudo o é”.  Tive vontade de dizer ao “sabichão” francês: “Aqui tudo se contamina, se interpenetra e se transforma. Espelhos quebrados, somos reflexos das nossas sete mil caras e das nossas setenta mil almas”. Talvez esse antropólogo francês-brasileiro não tivesse ainda compreendido bem a ideia brasileiríssima da antropofagia, não no sentido dado pelo tardio modernismo paulista, mas no sentido mais profundo dado pelos Cariris, índios tapuias do Nordeste, que devoravam seus mortos para não mais sentirem nem tristezas nem saudades. Com os mortos comungados, como fazem os cristãos devorando a carne do seu Deus, em forma de pão, e bebendo o seu sangue, transubstanciado em vinho, os Cariris guardavam os seus parentes e entes queridos dentro dos seus corpos e das suas almas, podendo assim reatiçar o sentido da festa e da continuidade da vida, “sem tristezas e sem saudades”.

 A II Conferência Nacional da Cultura, neste sentido, foi uma festa de comunhão, de ritual devorador de tradições e de culturas em trânsito, das memórias do futuro e de previsões do passado, de carnavalização do inconsciente coletivo e de desmontes da razão, de estado permanente de devir dos brincantes em busca do paraíso. Somos todos tripulantes das naus dos loucos medievais navegando em mares contemporâneos, dos cavalos dos orixás em transe, dos Zumbis imaginários que povoam a nossa negritude, do Pajé Seta Branca e suas falanges astrais baixando no grande circo do Vale do Amanhecer. Parafraseando Arquimedes, eu diria: “Dai-me um povo como o brasileiro, e eu reinvento o mundo”.

Os paulistas, associados à imagem dos bandeirantes predadores de civilizações, sofreram, de início, certa resistência por parte do Brasil profundo, ou seja, das outras regiões, que os identificaram pelos narizes empinados etc. Conversa vai e conversa vem, terminaram por se convencer de que São Paulo é a maior Capital Nordestina do Brasil e de que não existe paulista, o que existe é brasileiro que faz a vida em São Paulo e o “ser paulistano” reinventa. Foi um alívio chegarem a esta conclusão. Ouviu-se em uníssono: “Ah! Bom!...”. Os paulistas foram aceitos na comunidade brasileira e agora se orgulham de também serem nordestinos.
Enquanto isto, Chico César, de Catolé do Rocha, dava autógrafos para duas chinesas, dois acreanos, quatro bolivianos, três lituanos, sete gaúchos, quatorze armênios, quatro Xocó-Cariri e 42 coreanos, negociantes da Feira do Paraguai (a Feira dos Importados), aqui mesmo em Brasília. Zeca Baleiro fez um discurso semi-erudito e depois rodou a baiana junto com um boi de orquestra que serpenteava pelos labirintos do centro de convenções. Boi de sotaque zabumba com uma toada que fazia as dançarinas se desfazerem em movimentos sensuais. Mais bonito e sensual só o mesmo o Cacuriá de Dona Tetê, com seu ritmo quente, com seu erotismo equatorial, e dengos de coxas e seios de moças brincantes que mexem com o juízo das gentes, nestes tempos de pan e de transexualidade.

Por falar em sexualidade, senhor Ministro, outro aspecto importante, dentro da conferência, foi a organização dos homossexuais, lésbicas, simpatizantes e outras tendências contemporâneas. Unidos em blocos, belos e belas, na verdade radiantes, eles reivindicavam emendas parlamentares que assegurassem o desenvolvimento das culturas pansexuais, intersexuais, megassexuais e suprassexuais. Vi um jovem intelectual, homossexual assumido e politicamente correto, lépido e faceiro, candidato a cineasta, assíduo leitor de Foucault e de Deleuze, tentar convencer um cantador de viola de São José do Egito, tipo sertanejo, forte, moreno e de exótica beleza, a assumir o seu lado gay. Depois de ouvir o bem articulado discurso, o cantador perguntou: “o senhor está querendo que eu seja baitola, é?!”. O jovem intelectual insistiu, corrigindo aquela expressão politicamente incorreta: “Não, estou falando de cultura gay, algo muito mais complexo e profundo”. O cantador de viola se interessou pela conversa e, deixando de lado as questões de fundo semântico, antropológico e psicanalítico, perguntou: “E é bom?”. O jovem intelectual também abandonou o discurso acadêmico e, pegando a “deixa”, deu o veredito final: “É ótimo”. Não sei no que aquele colóquio resultou. Vai ver que o cantador abandonou a família, a mulher, dona Genoveva e os dez filhos (Francisco, Francinaldo, Francélia, Francir, Francimar, Fátima, Frazé, Franluz, Francorli e Francivan), e fugiu com o jovem intelectual para o Rio de janeiro, onde hoje compõe a trilha sonora minimalista de um curta-metragem, cheio de metalinguagens e influências de Wong Kar-Wa, viabilizado por um edital da Secretaria do Audiovisual do MinC. Estamos evoluindo.   

Este lado, vamos dizer assim, mais sexualizado da cultura brasileira, fluiu bonito, sem preconceitos e sem barreiras raciais, ideológicas e religiosas. Vi mesmo muitos militantes do PT, do PC do B, PSOL e do PV, erguerem as bandeiras da pansexualidade tropical. Os índios ensinaram para os antigos marinheiros, exilados, padres, poetas, seresteiros que não existe pecado abaixo da linha do Equador e que a “culpa” é uma doença cristã.  Essa liberação da libido atravessa todas as artes e todas as manifestações da cultura. Arte é sexo condensado, já dizia Freud. Se não disse, deveria ter dito, mesmo que isto tivesse antecipado o seu o rompimento traumático com Gustav Jung.

Teve especial destaque, nesta pós-moderna conferência, as manifestações da moda e dos seus elegantes delegados. Um estilista conterrâneo meu, de Quixeramobim, terra de nascimento de Antonio Conselheiro, contou-me a sua original carreira profissional. Depois de ter estagiado em Paris, trabalhado em Berlim, Praga, São Petersburgo e São Paulo, voltou para Quixeramobim e abriu uma butique de roupas pós-contemporânea chamada Samarkand. Arrasou. Um sucesso entre a pequena burguesia local e as meninas que têm avós aposentados pelo FUNRURAL. Pois bem, para demonstrar a sua criatividade este talentoso estilista do sertão do Ceará improvisou uma roupa com cartazes, folders, panfletos e outros pedaços de florestas salpicados de tinta gráfica. Na boca, colocou um pedaço de papel, ao modo de uma mordaça. Estaria ele protestando contra o abandono da moda no sertão central do Ceará? É bem possível, por vias das dúvidas, fui logo fazer lobby com alguns grupos de macumbeiros, de congadeiros, de violeiros, de dançarinas da dança do ventre e de professores da USP, para que fosse aprovada como prioritária a proposta de lei “Luxo para todos”, a ser enviada ao Congresso Nacional. A ideia é bem generosa e propõe que todos os grupos de tradições, aldeamentos indígenas e comunidades quilombolas, caiçaras e ciganas, tenham os seus estilistas e que sejam contratados, com preferência, aqueles que fizeram estágio em Paris. O estilista cearense argumentava, com muita propriedade: “Se os índios de José de Alencar tinham medo de morrer sem ver Paris e se comportavam com verdadeiros cavalheiros da Belle Époque, porque é que os brincantes de folias não podem ter roupas tão bonitas e ousadas de fazer inveja a Gabrielle Coco Chanel, Hubert de Givenchy, Christian Dior, Yves Saint Laurent, Pierre Cardin, Giorgio Armani e Gianni Versace?”. Sei que toda unanimidade é burra, mas fomos unânimes e apoiamos o encaminhamento da reivindicação. Concordei com o conterrâneo cearense e também com Maiakovsky, quando diz: “Gente é para brilhar!”.  É justo que os brincantes possam brilhar, ainda mais. “Quem gosta de pobreza é intelectual”, já filosofara Joãozinho Trinta, maranhense de São Luiz - a Atenas Brasileira, que se fez guru do carnaval carioca. Aqui somos todos reis: reis do reisado de congo, reis da panelada, reis das autopeças, reis da boca do Lixo, reis do futebol, reis do caldo de cana... Basta olhar as placas dos comércios populares nas periferias dos grandes centros urbanos. Somos republicanos, mas gostamos mesmo é da monarquia que tem mais brilho, tem mais festa, aluá e atabaques.

Tudo que aqui conto, senhor Ministro, foi apenas um pouco do que observei do muito que aconteceu, cumprindo fielmente a minha nomeação como “observador de eventos”, nova, honrosa e republicana função. Agradeço a V. Sª, pelo convite, pela oportunidade desta convivência continental e cósmica com aos povos do mundo que se reinventam no Brasil (mil povos, mil culturas e mil e uma heranças de humanidades). Com vossa permissão, faço uma confissão íntima, como fez Santo Agostinho: “Emocionei-me várias vezes. Em alguns momentos, disfarcei as lágrimas. Sou mesmo sentimental. Não vou mais esconder: gosto das guarânias de Cascatinha e Inhaha, dos boleros de Evaldo Gouveia e das baladas de Roberto Carlos”.

Ser índio por dois dias e ser delegado com direito a voz no grupo das grandes nações indígenas brasileiras, onde, juntos com os morubixabas, defendi a multiculturalidade e a preservação das 184 línguas indígenas vivas ainda existentes no País foi para mim uma felicidade. Em toda minha história, do alto dos meus 57 anos, 35 deles de militância artística, talvez tenha sido esta a minha maior vitória. Estou orgulhoso que estou danado. Não me tenha como abusado, mas vou logo avisando, só aceito o convite para ser novamente “observador”, na III Conferência Nacional da Cultura, com uma condição: dessa vez, quero voltar como “afro-descendente” e, se possível, com diploma de griô. A meu favor, senhor Ministro, para dar maior credibilidade a minha reivindicação, confesso um segredo de família: minha tataravó, judia que se fez cristã nova, casada com um libanês, encantou-se com um “afro-descendente”, um talentoso e robusto cantador de coco de embolada, que passou pelos sertões dos Inhamuns, lá por meados de 1835-38. Os anais das memórias familiares não precisam bem o ano exato.    
Pois bem, este “afro-descendente’ de nome Cosme Bento, ex-escravo, carregou minha tataravó e, no Maranhão, aliou-se às armas e à revolta do vaqueiro Raimundo Gomes, dando início à Revolta da Balaiada, de tão gloriosa memória, onde foi portador do honroso título de Imperador das Liberdades Bem-Te-Vis. Na mesma época, para lutar com o povo em armas, foi nomeado Comandante das Armas da Província o coronel Luiz Alves de Lima e Silva, que terminou vencendo os revoltosos, tratando-os a ferro e fogo, ganhando, por este feito, o título de nobreza de Duque de Caixas e a alcunha de “o pacificador”. O Imperador Cosme Bento, responsável pela leve morenice da minha família, foi enforcado, e minha avó ficou sozinha, em um quilombo, no interior do Maranhão, até que seu pai, o coronel Alexandre de Moura, homem de fortuna, mas muito temente a Deus, mandou buscá-la e ajudou-a a criar o bonito “mulatinho”, pois teve que cumprir promessa que a sua esposa, Dona Fideralina de Gusmão Feitosa de Moura, fizera ao italiano Frei Vital de Frescarolo, que já neste tempo andava fazendo milagres pelo sertão. Depois o “mulatinho” cresceu, fez-se um garboso mancebo e deixou vasta “afro-descendência” entre brancas, índias, negras, mulatas e caboclas da região, aumentando em muito o patrimônio da família, até que chegou a grande seca de 1888, que deixou sua vasta família na penúria, e muitos foram os que migraram para as florestas da Amazônia, onde se fizeram seringueiros, garimpeiros, comerciantes e vendedores de escravos índios e migrantes nordestinos. Alguns entraram no cangaço, outros na política, alguns foram ser padres, e alguns poucos, por falta de opção, entraram no exército e terminaram na Guerra do Paraguai, participando daquela desgraceira toda. Que Deus tenha piedade das suas almas.  

Desculpe a prosa espichada, senhor Ministro, mas foi tudo para dizer que tenho, assim, esse pé na senzala, o que me dá o direito de ser griô, quilombola, mestre de congada, cantador de pagode ou presidente da Fundação Palmares. Como sou modesto, quero apenas ser “afro-descendente” e colocar em um quadro emoldurado, bem na sala de visitas, próximo do retrato do Coração de Jesus, o meu diploma de griô. Se não aceitarem a minha leve morenice, eu pinto o meu rosto, com fuligem de lamparina misturada com óleo de linhaça, como fazem os sararás, caboclos e branquelos desenxabidos que se cobrem de falso negrume para brincarem no Maracatu do Ceará. Quero fazer inveja ao mestre Sebastião Revardière, do Reisado de Congo de Missão Velha, que nunca passou de branco, um mero cara pálida, descendente da nobreza europeia, cujos antepassados na Revolução Francesa caíram em desgraça com os jacobinos, foi exilado para o Brasil e se estabeleceram como vendedores de pão de coco com refresco de Bacuri, em São Luiz do Maranhão. O mestre Sebastião Revardière só tem mesmo para ostentar e alimentar o seu orgulho de nobreza decadente o seu diploma de “tesouro cultural”, dado pela Secretaria de Cultura do Ceará.  Antigamente, ele era “mestre”, mas agora virou “tesouro vivo”. A sua mulher, Dona Isabel, uma “afro-descendente” de corpo roliço e espírito desabusado, abandonou o reisado, com medo de ser nomeada “tesoura”, o que só serviria mesmo de mangação para o povo. Quem sabe, o Américo Córdula, secretário da Diversidade Cultural e Cidadania, possa lhe oferecer o título de “grioa”. É mesmo bonito, talvez ela aceite. Da minha parte, já aceitei, estou aprendendo línguas africanas e vou fazer meu discurso de agradecimento em iorubá ou, se preferirem, em francês, que é língua que, apesar de não estar na moda, ainda guarda algum charme e é de onde vem o multicultural nome “griot”.  Au Revoir, senhor Ministro.
 
Rosemberg Cariry – o observador de eventos do MinC
Brasília, 15 de março de 2010 
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