Alexandre Barbalho: Idéias sobre uma política cultural para o século XXI

Alexandre Barbalho - Professor de História da
UECE e referência sobre o Estudo de Políticas
Públicas para Cultura no Ceará - Foto: Alexandre Lucas  

Este texto, como o título indica, não trata da gestão cultural propriamente dita. Por gestão cultural entendo um conjunto de técnicas, de instrumentos, oriundo dos saberes administrativos, gerenciais, e aplicado ao setor da cultura. Em outras palavras, a gestão cultural pode ser definida como um conjunto de táticas, ou melhor dizendo, um conjunto tático de ações administrativas. Tático, em seu sentido etimológico, takticós, que significa “capaz de pôr em ordem”, capaz de ordenar.

Em vez de pensar já na ordenação do fazer cultural, gostaria de refletir mais estrategicamente. Ou seja, sobre algo que é anterior à gestão cultural; sobre algo que lhe de dá ânimo, alma. Gostaria de falar, portanto, de política cultural.

Ou mais especificamente, gostaria de levantar algumas idéias que eu considero estratégicas para uma política pública de cultura adequada a este nosso século.

Aqui cabe definir o que entendo por política cultural. Não se trata, por exemplo, da definição encontrada no Dicionário crítico de política cultural, organizado por Teixeira Coelho. Segundo o verbete do dicionário, política cultural seria uma “ciência da organização das estruturas culturais”.

Entendida assim, ela estaria mais próxima do conceito de gestão cultural do qual falava há pouco. Algo próximo de um saber instrumental, para usarmos um termo adorniano.

Para mim, política cultural significa atuar na criação, circulação e fruição de bens simbólicos. Esta atuação implica reconhecer que esse sistema processual, que é a cultura, se organiza como um campo, o campo cultural, que possui valores, capital e poder específicos.

Neste campo cultural, atuam diferentes atores ou agentes, que podem ser indivíduos (como, por exemplo, os artistas, os produtores, os gestores culturais) ou instituições (como os museus, os centros de cultura, as bibliotecas, as secretarias e as fundações de cultura, sindicatos de artistas etc.).

Por sua vez, todos estes atores possuem forças com níveis diferenciados de poder que, constantemente, entram em conflitos, mas também em combinações e alianças.

Partindo desta concepção de campo cultural e de sua política, a questão que se coloca é: Qual o papel do Estado na cultura? Ou de outra forma: Como pensar uma política pública de cultura? E ressalto a palavra pública, pois ela tem uma conotação estratégica ao se contrapor explicitamente, por um lado, à idéia de privado.

Por outro, ao incluir não só o Estado, mas também a sociedade civil como um todo. O que Gramsci denominaria de concepção ampliada de Estado. E isto é o que devemos esperar de uma democracia, de uma re-pública.

Pois bem, acredito que há várias possibilidades de políticas públicas de cultura. Possibilidades pautadas pelas condições econômicas, políticas, sociais e culturais de cada local específico. Fica difícil assim pensar em uma ou várias fórmulas aplicáveis sem discriminação. Se assim fizesse, estaria recorrendo àquele saber instrumental do qual quero me afastar.

Daí porque o título de minha intervenção trata de “uma política cultural” – artigo indefinido e singular – e não de “a política cultural”.

No entanto, o artigo indefinido não significa que algumas coisas não possam ser definidas como ponto de partida. Ao contrário, precisamos fazer previamente uma análise de conjuntura para traçarmos uma política de cultura, qualquer que seja ela.

Aqui gostaria de ser o mais amplo possível. O que implica em não me deter nas esferas local, municipal, estadual, regional ou mesmo nacional. Mas pensar a conjuntura de um mundo globalizado que engloba todas estas esferas, ao mesmo tempo em que as mantém conectadas em uma mesma rede.

E como nomear esta rede? Podemos chamá-la, segundo alguns autores contemporâneos, de “capitalismo mundial integrado” ou de “Império”. Sendo que ambos os termos remetem a um mesmo estado de coisas.

Em um livro recente, Michael Hardt e Toni Negri procuraram definir o Império contemporâneo. Este pode ser entendido como a realização plena do capitalismo em todo o mundo; como a implicação de todas as forças sociais pelo capital globalizado.

No Império atual, já não vivemos sob as ordens de uma sociedade disciplinar moderna, como a definida por Foucault. Mas em uma exarcebação desta, quando a disciplina salta os muros das instituições (como as escolas, as prisões, os asilos etc.) e envolve todo o corpo social. Na atual sociedade pós-moderna vivemos sob as ordens de uma sociedade de controle.

Nas palavras de Hardt e Negri, “a sociedade, agrupada dentro de um poder que vai até os gânglios da estrutura social e seus processos de desenvolvimento, reage como um só corpo. O poder é, dessa forma, expresso como um controle que se estende pelas profundezas da consciência e dos corpos da população – e ao mesmo tempo, através da totalidade das relações sociais”.

Portanto, a força maior do Império contemporâneo está em seu poder sobre a esfera dos afetos; na interiorização dos valores imperiais por parte dos indivíduos; na colonização de suas subjetividades pelo poder imperial. Assim ficamos todos desejando as mesmas palavras, as mesmas coisas. E se instaura a vitória do sentimento e do pensamento únicos.

Outros nomes poderiam ser dados a essa plenipotência capitalista; a essa onipresença do mercado. Como, p. ex., “sociedade do espetáculo”, como nomeou Guy Debord; ou “ordem do simulacro”, como defende Jean Baudrillard.

Mas penso que Hardt, Negri e outros autores afins, não caem no niilismo vigente e apontam os limites do Império e a possibilidade de forças contra-imperiais. Estas residem principalmente na biopolítica, ou seja, em uma política que afirma as potências da vida. O que se dá por meio da capacidade criativa dos homens, de seu trabalho imaterial e afetivo.

Por trabalho imaterial devemos entender aquele que produz um bem imaterial, como um produto cultural, um conhecimento, uma comunicação. É um trabalho profundamente afetivo, comunitário, cooperativo, pois implica sempre na relação entre subjetividades.

Como podemos deduzir, a cultura, campo privilegiado do trabalho imaterial, é um lugar estratégico para nos opormos à sociedade de controle; ao imperativo da mercadoria.

O que não implica desconhecer que também a cultura foi invadida pela lógica mercadológica. Basta consultarmos os números que apontam o lugar de destaque na economia da indústria cultural, ou indústria do entretenimento, como preferem sintomaticamente os norte-americanos.

Mas também ocorre um movimento contrário. Ou seja, a mercadoria agrega cada vez mais um valor simbólico. O que se dá de duas formas. Uma, com a valorização cada vez maior do design na fabricação de objetos os mais diversos: da geladeira ao avião; do liqüidificador à televisão. E outra, com a construção das marcas destes objetos, por meio da publicidade, do marketing.

Ambas as formas são tentativas de destacar os produtos imersos no lugar-comum que é o mercado consumidor. Ao mesmo tempo, a renovação constante do design e da marca, marcada pelo ritmo alucinante da moda, imprimem aos objetos um caráter efêmero, descartável. Assim é criado, ao lado do valor de uso e do valor de troca, o seu valor-signo, como diria Baudrillard.

Diante dessa perspectiva, volto à nossa questão e ao nosso local específico – a de pensar uma política pública de cultura para Fortaleza, para o Ceará, para o Brasil.

Se optarmos por responder a este desafio da biopolítica, que é o que proponho, que é a minha possibilidade de resposta, devemos lutar por uma política cultural que promova, favoreça, intensifique, a invenção e a diferenciação.

Paradoxalmente, para dar conta dos significados que as palavras invenção e diferenciação devem adquirir neste século XXI, recorrerei a um autor de fins do séc. XIX, o sociólogo francês Gabriel Tarde.

Tarde pode ser considerado como um dos fundadores da Sociologia, mesmo não constando, geralmente, nos manuais de introdução sociológica. Isso porque a disciplina, em sua ânsia cientificista, positivista, em busca de um pensamento macro, objetivo, relegou ao esquecimento os pensadores que observavam a sociedade em suas dimensões micro, subjetivas, como Tarde ou Georg Simmel.

Pois agora, faz-se necessário observar o que ocorre nas nossas vizinhanças para podermos dar conta do global. Glocalize-se, um neologismo resultado da junção entre localizar e globalizar, é a palavra de ordem da estratégia contemporânea.

Pois bem, contra as forças hegemônicas e de homogeneização do capitalismo mundial integrado, volto a dizer, devemos promover em nosso espaço de atuação a invenção e a diferenciação.

Por invenção, e aí seguindo as idéias de Tarde, não devemos entender apenas as criações que revolucionam; que transformam radicalmente um estado de coisas; que promovem um salto de qualidade. Mas também são invenções aquelas descobertas mais simples; que ocorrem em nosso dia-a-dia; que afetam quem está próximo a nós, ao nosso lado, em nossa vizinhança.

Por invenção, Tarde entende “todas as iniciativas individuais, não somente sem ter em conta o seu grau de consciência – porque muitas vezes o indivíduo inova no seu íntimo, e para dizer a verdade, o mais imitador dos homens é inovador por qualquer lado – mas ainda sem reparar absolutamente nada na maior ou menor dificuldade e no mérito da inovação”.

Podemos, portanto, qualificar de inovações, de descobertas, as criações mais simples, “tanto mais que as mais fáceis nem sempre são as menos fecundas, nem as mais difíceis são as menos inúteis”. Assim, é preciso valorizar estas idéias imperceptíveis em seu nascimento, acidentais, anônimas, tênues, pois elas engrossam o caldo de criação que é a vida humana.

Por sua vez, esta dimensão imediata não impede que surja uma grande corrente de afetação e que ganhe um alcance social cada vez mais amplo, talvez mesmo global. Em todo caso, como afirma Tarde, é preciso partir daqui, das iniciativas renovadoras que trazem ao mundo, “ao mesmo tempo necessidades novas e novas satisfações”.

Uma idéia assim potencializa uma política cultural. Esta deixa de separar os artistas geniais dos consumidores passivos e vê a todos como possíveis criadores. Ela afeta a todos, não como públicos de uma sociedade do espetáculo, mas como inventores.

Dessacralizando a criação, dessacraliza também a circulação e a fruição. Os museus, os centros de cultura, os teatros, os cinemas deixam de ser locais sagrados, herméticos, e acabam incorporados, apropriados pela multidão. Também não precisa mais que estes locais da cultura sejam imponentes, grandiosos, sofisticados, higienizados.

Assim a criação, a circulação e a fruição da cultura se dão em qualquer local, pois todo local tem o seu saber, a sua inventividade. Temos então uma política cultural inclusiva e não exclusiva; democrática e não autoritária; geradora e não reprodutora.

Por sua vez, promover a invenção é promover a diferença, a diferenciação. O que significa ir contra as linhas de força dominantes do mercado cultural com suas ofertas controladas. Mas também ir contra os movimentos delimitadores das identidades.

Diferir é aumentar a riqueza do corpo social. Identificar é traçar fronteiras, limites, a este movimento. Para Tarde, se há alguma substância definidora do ser é a substância da diferença, da heterogeneidade. O ser é o ser da diferença e não o ser da identidade: “Existir é diferir, e, de certa forma, a diferença é a dimensão substancial das coisas, aquilo que elas têm de mais próprio e mais comum”.

As representações sociais são, antes de tudo, invenções de indivíduos em processos de interação e, ao mesmo tempo, de diferenciação. A qualquer momento pode surgir uma nova idéia. Uma bifurcação ocasionando uma série divergente. Portanto, a invenção renova, faz variar o social, produz diferenças. É a diferença a força inventora do social.

E as identidades, como situá-las nesse processo de diferenciação? Se é possível alguma identidade a partir de semelhanças entre subjetividades diferenciadas, ela se dá por meio da imitação e da repetição. Não há, portanto, identidade pré-existente. Qualquer uma é antes criação de subjetividades permeadas por um mesmo fluxo.

Um indivíduo não se assemelha a outro naturalmente. Eles se tornam semelhantes na medida que um exerce uma ação sobre o outro. Na medida que a diferença de um afeta a do outro e passa a constituí-lo. A identidade, diz Tarde, “é apenas um mínimo, não passando de uma espécie, e espécie infinitamente rara, de diferença...”.

No corpo social, onde a identidade e a diferença se alternam repetidas vezes, “o termo inicial e o termo final são a diferença”. O que vale são as diferenças em si, em suas alteridades. As diferenças podem até ser integradas em uma identidade. Mas esta possível síntese não esgota jamais a força de diferenciação criadora interna a cada subjetividade.

Estabelecer uma identidade como elemento heurístico é definir um território, não o mapa completo do indivíduo, pois todo indivíduo é perpassado por vários fluxos diferenciados e diferenciantes.

Quando uma política pública de cultura promove o discurso identitário ela corre um grande risco de, no fim das contas, colocar em ordem, gerenciar, o processo de diferenciação, que é um movimento de instabilidade, de dispersão. Ela pode acabar instaurar o Idêntico lá onde pulsam as diferenças.

“Todo déspota ama a simetria”, afirmou Tarde. O autoritarismo não aceita a diferença, a oposição. Assim podemos entender porque no Brasil os regimes autoritários de Getúlio Vagas e dos militares tinham tanta obsessão por definir uma identidade nacional, o Ser nacional.

Em um movimento contrário, creio que uma política pública de cultura deva promover o lugar da diferença na sociedade contemporânea. Sociedade marcada por movimentos contraditórios de homogeneização global (certamente a linha de força maior) e de ratificação das diferenças microscópicas. Lugar este que, na tradição egocêntrica e etnocêntrica do pensamento ocidental, foi sufocado pelo peso da Identidade (individual e social).

Pensar a diferença como o personagem de Jorge Luis Borges, Ts’ui Pen, pensava o tempo no seu romance-labirinto O jardim de veredas que se bifurcam. Tal como não há uma Identidade essencial, não existe um Tempo uniforme, absoluto, universal. Mas “infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades”. Um tempo, tal como as diferenças, em constante diferenciação.  

Para finalizar, gostaria de trazer uma definição de política proposta por Michael de Certeau.  Certeau coordenou nos anos 70 uma longa pesquisa para o Ministério da Cultura da França, pesquisa da qual resultaram os livros A invenção do cotidiano e A cultura no plural. Livros que, como os títulos indicam, têm tudo a ver com o que acabamos de falar

Pois bem, Certeau disse que “a política não garante a felicidade nem confere significado às coisas. Ela cria ou recusa condições de possibilidades. Ela proíbe ou permite: torna possível ou impossível”.

Assim, gostaria de propor uma política pública de cultura que criasse as condições de possibilidades, que permitisse, que tornasse possível. Enfim, uma política cultural que não sucumbisse aos imperativos mercadológicos; que inventasse; que se diferenciasse. Mesmo que errasse mais e acertasse menos, os acertos valerão o investimento.

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. Cultura y Administración. In: ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Sociologica. Madri, Taurus, 1986a. p. 53-73.

BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política do signo. Lisboa, Edições 70, 1995a.

_____. Simulacros e simulações. Lisboa, Relógio d’Água, 1991.

BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Vol I. São Paulo, Globo, 1999.

CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, Papirus, 1995.

COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. Cultura e imaginário. São Paulo, Iluminuras, 1997.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1985.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro, Record, 2001.

TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Petrópolis, Vozes, 2003.

_____. As leis da imitação. Porto, Rés, 1976.

 

 

Proxima
« Anterior
Anterior
Proxima »
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário